Não vivemos numa democracia condicionada

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/11/2015)

         Daniel Oliveira

                      Daniel Oliveira

A reação de muita imprensa internacional ao primeiro discurso de Cavaco Silva centrou-se num tema que mereceu pouco debate em Portugal: a de que o Presidente da República se recusaria a dar posse a uma coligação que integrasse partidos antieuropeístas. As coisas, como sabemos, são até mais básicas e graves do que isto (não têm de ser expressamente antieuropeístas e não vão para o governo). Mas numa Europa onde a união monetária e a catástrofe que ela significou para o projeto europeu é um debate natural e feito de forma descomplexada, isto é uma coisa relevante. Mesmo nos EUA houve quem comparasse esta postura à que dominava a Europa quando ela era dividida pela Cortina de Ferro, em que se proibiam Estados soberanos de decidirem o seu próprio futuro fora do espaço internacional que lhes estava destinado.

No segundo discurso de Cavaco Silva, na tomada de posse daquele que promete ser o mais curto Governo da história da nossa democracia, o Presidente foi mais sereno. Mas elencou, mais uma vez, aquelas que considera serem as condições para um Governo exercer o seu mandato. A lista foi longa e sempre apresentada como uma exigência indiscutível e fora do terreno do debate político.

“Exige-se ao Governo que agora toma posse que respeite…” Assim começou cada frase de Cavaco Silva, que incluiu a participação na NATO, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Tratado Orçamental, a União Bancária e, muitíssimo mais grave, a participação na negociação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), que nunca foi decidida ou debatida em Portugal. Para Cavaco Silva, mas não apenas para ele, foi sendo retirado ao espaço da democracia e, por isso, dos poderes de governos eleitos, grande parte do que é fundamental na soberania do povo: política de defesa, política orçamental, economia externa. Na prática, quase todas as funções de soberania. Até coisas que nem sequer foram ainda discutidas, decididas ou assinadas. Como se a nossa participação em espaços de soberania partilhada não fosse voluntária e revogável.

Já várias pessoas deixaram claro que nada disto está em causa com o próximo governo. Ao que tudo indica ele será do Partido Socialista, terá como base o seu programa e apenas será alterado nos pontos específicos que Bloco de Esquerda e PCP estão a pôr como condições para lhe darem o seu apoio. Um e outro já garantiram que os compromissos internacionais não constam da sua lista de condições. Assim, o debate é teórico. Mas é fundamental para que não se continue a instalar a ideia de que vivemos numa democracia condicionada, à qual foi retirado o direito de debater o que é estrutural e que apenas pode discutir o que não foi decidido por governos anteriores.

É verdade que Portugal prescindiu de parte da sua soberania. E que muitas vezes até prescindiu de poderes que dependiam de eleitos para os entregar a estruturas burocráticas que não respondem perante o povo. E que o fez sem nunca referendar estas decisões, como se exigiria quando há transferências de soberania. Ainda assim, enquanto existirmos como Nação, nenhuma dessas decisões é irreversível. Sair do euro ou da NATO, renegociar metas orçamentais (cuja avaliação do cumprimento tem sido mais ou menos arbitrária, conforme as vantagens e desvantagens que têm para determinados países) ou compromissos internacionais é e será sempre uma decisão dos portugueses e dos seus eleitos. Aceitar o TTIP, um gravíssimo atentado à independência da Justiça e aos direitos laborais, ambientais e do consumidor, também é um direito soberano dos portugueses. Recusar o euro, o Tratado Orçamental, a NATO ou o TTIP terá, se alguma vez acontecer, fortíssimas consequências. Cada cidadão terá a sua opinião sobre a vantagem ou desvantagem de recuperar a soberania nestes domínios e do preço a pagar por o fazer. Mas esse é um direito seu, soberano e ilimitado.

O resultado das últimas eleições legislativas determinou uma mudança em relação à austeridade e às políticas sociais e económicas. Mas não determinou uma mudança na nossa relação com a Europa ou com a NATO. E é apenas por isso que nada mudará nessa matéria. Se o resultado eleitoral determinasse coisa diferente e houvesse uma maioria parlamentar disposta a rever a nossa relação com a União Europeia, fosse na defesa da saída do euro fosse através de uma negociação da aplicação do Tratado Orçamental (há uma maioria parlamentar que defende uma leitura diferente desse Tratado); disposta a tirar Portugal da NATO ou a opor-se ao TTIP, Portugal, enquanto Estado livre e independente, teria o direito de seguir esse caminho e viver com as suas consequências.

É importante repetir isto: ser europeísta ou antieuropeísta, ser a favor ou contra a participação na NATO, não é o mesmo que ser democrata ou antidemocrata. Os governos democráticos estão obrigados a respeitar a vontade do povo, o Estado de Direito Democrático e a Constituição. O resto resulta de escolhas políticas que fizemos.

E podemos fazer sempre outras. Apesar de nada disto estar agora em questão, recordá-lo é a única forma de não colocar a democracia num impasse quando e se o povo quiser mudar de caminho.

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