O impensável cordão sanitário

(Daniel Oliveira, in Expresso, 24/10/2015)

         Daniel Oliveira

                   Daniel Oliveira

Defendi, desde o princípio, que Cavaco Silva devia chamar o líder do partido ou coligação com mais votos para formar governo. Em nome do parlamentarismo que me leva a defender a legitimidade de um governo de esquerda com base numa maioria parlamentar, só ao Parlamento cabe chumbar o governo de Passos. Serenamente, esperava eu, o Presidente passaria para a Assembleia da República as funções que apenas a ela dizem respeito. Nunca esperei o que veio a acompanhar esta decisão. E o discurso que fez ultrapassa em muito a questão de quem governará nos próximos anos. É um discurso que representa uma nova e preocupante configuração da democracia portuguesa.

Apesar do Presidente ter algum espaço de manobra, não vejo como pode pensar que tem o poder de aprovação prévia do conteúdo de programas de governo. Essa é função exclusiva da Assembleia da República. Só que, na verdade, Cavaco Silva nem sequer pôs em causa um programa que ainda nem sequer conhece. Nem pôs em causa as condições do BE e do PCP para apoiar um governo do PS, que sabidamente não incluem a saída da NATO, a saída do euro ou qualquer dos assuntos referidos. O seu discurso baseia-se numa posição de princípio quanto à natureza ideológica destes dois partidos. E isto levanta um problema democrático que, caso esta tese prevalecesse, teria implicações gravíssimas muito para lá desta legislatura.

O chefe de Estado diz a um milhão de portugueses que o seu voto não conta. Na realidade, é pior do que não contar. Como nada do que Cavaco falou parece estar em causa na proposta negociada entre os partidos, é apenas o parlamentar destes partidos a um governo que torna esse governo inaceitável. É como se o Presidente da República criasse um cordão sanitário em torno do Bloco de Esquerda e do PCP.

Para tomar posse, um governo está formalmente impedido de ter o seu apoio. E este Presidente da República julga que pode impor esta regra à democracia portuguesa. Sendo coerente, mais valeria ilegalizá-los.

Como se não chegasse, Cavaco Silva insinuou um apelo aos deputados do PS para que estes desobedeçam à disciplina de voto numa rejeição do programa do governo de Passos Coelho. Além de uma intromissão na vida de um partido, o Presidente arrisca uma interferência grosseira nas funções da Assembleia da República, ao fazer um apelo ao voto contra uma moção que ainda nem sequer existe. Para rematar, Cavaco põe-se numa posição muitíssimo complicada para as próximas semanas. O desvario da sua intervenção reforçou a unidade dos deputados do PS na votação de uma moção de rejeição e a certeza de que PS, BE e PCP já não hesitarão, até por pressão de uma base ultrajada pelo Presidente, no acordo que vão firmar. Certa a legítima morte, ainda antes de nascer, de um governo também legitimamente indigitado, Cavaco deu sinais de estar preparado para um braço de ferro com o Parlamento, dando a entender que não aceitará uma alternativa maioritária e deixando um governo de gestão por vários meses. Não porque seja mais estável. Apenas porque recusa governos apoiados por partidos de que não gosta. Tudo isto feito por um Presidente em fim de mandato e sem deter uma parte fundamental dos seus poderes. Mais um momento brilhante, caro Aníbal.

2 pensamentos sobre “O impensável cordão sanitário

  1. Com mudança de estratégia da União Europeia, virada para o capital menos para a solidariedade, é claro, que todos os países que a compõe tb mudem. As tradições, que está a dar muito jeito à coligação, já não valem nada e quem as rompeu foi a coligação neoliberal. Quando cortou pensões e reformas contributivas. Ora isso, não só é um romper duma tradição de confiança que existia no Estado português como tb é roubar o dinheiro que depositamos nas suas mãos, confiadamente, entre outras…

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