O nervosismo, a falta de tino, e as orações de Passos Coelho

(Estátua de Sal, 18/10/2015)

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O País continua em crise. O desemprego está aí. A dívida continua a trepar. E ainda não vimos tudo, pois parece que ainda há muitos esqueletos escondidos no armário, segundo insinuou António Costa na última entrevista à TVI.

Mas eu antevejo que a crise está em vias de acabar para os psiquiatras e para as farmácias. Os plumitivos da direita devem já ter esgotado as marcações nas agendas dos doutores da mente e os stocks de antidepressivos devem estar a atingir os mínimos das últimas décadas.

Não dormem. Entraram no discurso delirante dos esquizofrénicos e ouvem vozes e acordam a suar ao som de acordes fortes da Internacional. Que susto e que incómodo. A assombração é perderem o poder – tal causa sempre calafrios -, e sobretudo perderem-no para um governo do PS apoiado pelo PCP e pelo BE: “vade retro, Satanás”, sussurram entre dois goles de chá de tília para acalmar a inquietação.

Este estado de alucinação febril manifesta-se nas prestações públicas das mais ínclitas personagens que à direita povoam o quotidiano informativo e político do momento. Os argumentos, de tão ridículos e inusitados chegam a ser diagnóstico de demência precoce ou de ataque de algum vírus desconhecido para o qual a OMS deve de imediato tomar providências decretando o estado de quarentena para que tais figuras não contaminem o resto da população, por enquanto ainda sã de espírito. Vou percorrer alguns dos argumentos demonstrativos da falta de tino de quem os defende:

  1. Legitimidade constitucional versus legitimidade política. A direita mais contida diz que tal governo do PS teria a primeira mas que careceria da segunda. Não sou especialista em minudências constitucionais, mas parece-me que não existe nunca uma sem a outra. Se um governo é constitucionalmente legítimo ele nunca pode carecer de legitimidade política, a não ser que o regime seja totalitário e a legitimidade política não tenha sido obtida em eleições livres. Os governos do Dr. Salazar tinham legitimidade constitucional mas não tinham legitimidade política porque não existiam eleições livres e democráticas das quais emanassem. O que, de forma encapotada, a direita quer dizer, não o dizendo, com esta formulação é que PCP e BE são partidos que devem estar afastados da governação, são excrescências políticas do regime democrático, e que, infelizmente, a Constituição não reflete tal imperativo de autarcia e de ilegalização de tais partidos, surgindo assim uma clivagem entre os dois tipos de legitimidade. Mas, se vivemos num país democrático, e sabendo que não são as forças de esquerda que questionam a legitimidade dos partidos de direita se expressarem e governar, parece-me que existe maior discrepância entre a Constituição da República e as gentes que manifestam estas opiniões do que entre o texto constitucional e a presença dos partidos à esquerda na governação
  2. Os partidos à esquerda têm programas que não irão poder cumprir caso aceitem os compromissos com a Europa. Este argumento, mais uma vez revela o desespero e o espírito totalitário da direita. Quem tem que cuidar do cumprimento ou incumprimento programático de um partido são os seus eleitores e os seus militantes. Se a direita não votou no PCP ou no BE, a que título se preocupa com o eventual desencanto dos eleitores que o fizeram? Dever-se-iam, isso sim, preocupar com o incumprimento programático que Passos Coelho se prepara para lhes oferecer, dizendo que aceitará tudo e mais alguma coisa (inclusive a participação no Governo) que o PS queira, a troco do seu apoio ou abstenção no parlamento. E deveriam, nos quatro anos que passaram, ter responsabilizado Coelho e Portas por terem governado implementando medidas que nada tiveram a ver com o programa eleitoral que lhes apresentaram em 2011.
  3. Não acreditam que PCP e BE deixem de tentar de cumprir os seus programas, isto é, deixem de lutar contra o Tratado Orçamental, renegociar a dívida, e eventualmente defender a saída da Nato. Este argumento é tentar trazer para o debate político uma questão de teologia ou de fé. Eles não acreditam e por isso a realidade deriva da fé. Eu também não acreditava que Portas, esse paladino dos reformados e pensionistas, abjurasse do seu programa para se juntar e fazer coro com os radicais que querem destruir a “peste grisalha”. Mas fê-lo. Eu também não acreditava que o CDS que durante décadas foi um partido eurocético, questionando a adesão de Portugal à Europa, deixasse para trás essas bandeiras. Mas deixou. Ou seja, a direita pode ser pragmática e sacrificar princípios e valores em nome da conquista do poder, mas tal posicionamento é agora considerado um anátema no que toca aos partidos de esquerda. Mais uma vez, a mensagem é subliminar: a direita acha que goza de uma superioridade imanente, rácica ou de outro tipo, que não reconhece a terceiros. No fundo, citando Orwell, eles acreditam lá no fundo, que somos todos iguais mas há sempre uns mais iguais que outros.
  4. Não acreditam que seja possível que tal governo possa executar as medidas de austeridade (as tais reformas estruturais que falta fazer) e que a Europa e os credores vão exigir. Este argumento é o cúmulo da hipocrisia. A PAF e Coelho bradaram em alta voz que a austeridade tinha acabado durante a campanha eleitoral. Agitaram os números das exportações, os números do desemprego manipulado mas a baixar, o crescimento anémico mas a subir, o photomaton do país melhor e em franca recuperação. Pois bem. Afinal, agora cai-lhes a máscara. A austeridade continua na agenda e segue dentro de momentos e o PS, se for governo, não será capaz de a executar, dizem eles, porque o PCP e o BE não irão sufraga-la. Mas este argumento devido ao futuro a curto prazo que revela só pode virar-se contra a própria PAF: os portugueses votaram maioritariamente contra a austeridade e a ser verdade que tal governo do PS será incapaz de prosseguir com a austeridade só podem saudar e aclamar a vinda de tal governo. Ou seja, o argumento da PAF vira-se contra a própria PAF.
  5. O PSD é o partido mais votado, logo Cavaco deve chamar a governar Passos e Portas, porque sempre foi essa a tradição. Este argumento é formalmente legítimo, ainda que não deva ser sustentado na tradição,  e parece-me que deve ser tido em conta, apesar de, caso o PS tivesse sido o partido mais votado, a direita viria dizer, como defendia Portas em 2011, que a coligação tendo mais deputados que o PS é que deveria ser chamada a governar. Mas a questão nem é essa. A questão é que o PS não pode ser obrigado a apoiar o governo da PAF caso Cavaco o indigite, por muitos malabarismos, ataques, e chantagens que se faça sobre o PS e sobretudo sobre o seu líder António Costa. Assim, em nome da estabilidade do país e da sua governabilidade urgente – como se vê pela pressão de Bruxelas na requisição imediata do esboço do Orçamento para 2016 -, Cavaco poderia queimar etapas e não promover um governo PAF, à partida votado à queda imediata. Mas a direita, é mais uma vez teológica e não acredita. Não acredita que o governo PAF caia no Parlamento pois tem esperança de conseguir cindir a bancada parlamentar do PS, encontrando aí os deputados que lhe faltam para passar o seu programa e o Orçamento. A fé é que nos salva, e a direita dos santinhos e das procissões, até irá a Fátima em peregrinação para ser salva por um milagre de última hora. Isto sem prejuízo deste plano conspirador já estar a ser posto em marcha acelerada, não vá dar-se o caso de a Nossa Senhora estar distraída ou mesmo ter também virado à esquerda.
  6. Votar contra o governo da PAF e fazê-lo cair na Assembleia da República substituindo-o por um governo do PS apoiado à esquerda seria dar corpo a uma “coligação negativa”, porque não há similitudes entre o programa do PS e aqueles do PCP e do BE.  Este argumento é o mais paradigmático do estado febril das eminências da direita que por aí opinam. Então a coligação parlamentar, PSD+CDS+PCP+BE que derrubou o governo de Sócrates, em 2011, não foi uma “coligação negativa”?! Havia alguma proximidade programática entre os programas do PSD e do CDS e os do PCP e BE nessa altura? Não foi esta aliança contranatura e espúria? Nessa altura os votos do PCP e do BE eram bons e legítimos para formar maiorias parlamentares mas agora são maus e ilegítimos para se formar também uma maioria? E que similitudes há entre o programa que o PS apresentou na campanha eleitoral e o programa da PAF? Portas dizia que o programa do PS era o do Syriza. Que o programa do PS, se aplicado, levaria ao regresso da troika. Como pode, pois, a PAF vir agora invocar proximidade dos seus desígnios governativos com o programa do PS?!
  7. Outros argumentos de caráter trauliteiro, de anticomunismo primário, revanchismo com a História, bafios salazarentos e desforra com a democracia e com as liberdades. Não vou sequer analisa-los e dar-lhes crédito. A direita profunda e menos profunda está em pânico. O verniz democrático que foi obrigada a usar está a desfazer-se. Personagens insuspeitas de entorse democrática estão a revelar que, lá no fundo, ainda estão em 24 de Abril e que choram amargamente que o remanso da ditadura tenha sido substituído pela dinâmica e pela inquietude que as tensões das regras constitucionais democráticas originam.

Não sei qual será o desenlace desta situação de conflitualidade democrática. Não sei mesmo se o PS conseguirá ou não chegar a um acordo de governo, qualquer que ele seja, que permita a constituição de uma alternativa à PAF durante uma legislatura e, a consegui-lo, se ela terá hipóteses de chegar ao fim. Parece-me, contudo, que as negociações estão a ocorrer com a normalidade que deriva de todos os intervenientes estarem nelas de boa-fé e com empenho.

Mas só o facto de terem tentado e assim quebrado um tabu que durante décadas permitiu que a direita governasse tendo acesso ao Poder num nível sempre superior à sua expressão eleitoral, já é uma rutura com a História e com a tradição.

Mas se o PS chegar a ser governo com o apoio dos partidos à sua esquerda e assumindo como adquirido que não aceita pôr em causa os compromissos com a Europa, nomeadamente o Tratado Orçamental, eu tenho um sonho que, confesso me faz sorrir, e que adorava que se tornasse realidade. Almejo ver o dia em que o PS terá que propor na Assembleia da República medidas de austeridade mais ou menos mitigada, com a conivência pelo menos consentida do PCP e do BE, e ver Passos Coelho, como líder da oposição atacar o governo por querer ir além da própria austeridade que ele tão bem e tão obedientemente implementou. Coelho entrará para o panteão do anedotário nacional já que estará, finalmente, a defender as suas promessas eleitorais de 2011, que denegou, mas com quatro anos de atraso. Ironia das ironias.

Nesse dia, será contudo, com algum amargor, que recordarei de novo a conhecida frase de Marx: “A história repete-se sempre duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa”.

 

10 pensamentos sobre “O nervosismo, a falta de tino, e as orações de Passos Coelho

  1. Coligação à Esquerda
    Conheça países europeus liderados por quem perdeu as eleições – JN
    Dinamarca com 19% dos votos, Luxemburgo com 18,3% dos votos ,Bélgica foi o quinto mais votado (9,64%.

    Alternativa de esquerda é “tão legítima” quanto governo de Passos, diz Adriano Moreira -.

    – “Se Cavaco souber que AR chumba, nomeá-los é perda de tempo” – Portugal – DN
    Constitucionalista Jorge Reis Novais defende que “Portugal não está em condições de brincar aos governos” e que só a esquerda pode garantir maioria no…

    O líder dos sociais-democratas alemães (SPD) e vice-chanceler do executivo germânico, Sigmar Gabriel, transmitiu hoje ao secretário-geral do PS votos de sucesso em relação processo de formação de um Governo liderado pelo próprio António Costa.

    Martin Schulz, o presidente do Eurogrupo, considerou “absolutamente normal” que o líder do PS “tente encontrar aliados à esquerda”, admitindo que gostaria de ver o “amigo António Costa” como primeiro-ministro.

    Não me lembro de ver ninguém preocupado quando foi chumbado o PEC IV, por sinal uma solução já aprovada por Bruxelas, BCE e Merkel, que o Parlamento rejeitou, mas que Espanha e Italia aproveitou. A destruição dessa consequência está bem visível nestes quatro anos.
    Anormal foi a coligação de direita com a esquerda para derrubar Sócrates chumbando o PEC IV. Se esta coligação de esquerda seguir em frente é a remissão de um pecado que devia ter recebido um grande castigo, mas que afinal não aconteceu, não só à esquerda, mas também à direita pelo mal que fizeram a Portugal e ao seu povo, desde logo por terem colocado os interesses pessoais e do partido à frente dos interesses do País. Todos sabiam que o governo de Sócrates caia e era necessário pedir ajuda externa. Sócrates lutou até ao limite das suas forças, mas ironia da história é o único que até ao presente esteve preso.
    Podemos estar perante um momento muito importante na vida política portuguesa se esta coligação vier a ser feita. Desde logo a responsabilização do PC e BE na governação. O sonho de Sá Carneiro era a existência de dois partidos, um da direita e outro da esquerda. Depois da queda do muro, ficou comprovado que não se comem crianças ao pequeno almoço nem se dão injeções atrás da orelha aos velhos, mas há quem coma o almoço às crianças e quem ache que os velhos são a peste grisalha.
    Se o filósofo grego Diógenes, discípulo de Aristóteles, viesse a Portugal, nem com uma candeia acesa ia encontrar muitos homens e mulheres honestas, pois a grande maioria que até defendia a esquerda e atacava a direita, mudou de opinião, com medo de perder privilégios.
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2015/09/comparando-governo-de-socrates-e-passos.html

    • Concordo com o comentário. Ma não vale ser ingenuo, vai haver um preço a pagar, e se os liricos entrarem em parafuso vai ser pesado. O gerente do banco na minha terra , fez um emprestimo a um juro simpatico a um amigo meu; um dia vê- o passar num mercedez novo com quatro garinas muito espampanantes; no dia seguinte telefona ao meu amigo para negociar os juros que passaram para o dobro – ordens superiores disse ele!!!

  2. «As contas das Legislativas que ainda ninguém fez:
    O PS foi o partido mais votado.
    Cada um dos seus 86 deputados teve de recolher em média 20.312 votos.
    A cada um dos 107 deputados da PaF bastou uma média de 19.462 para ser eleito.
    Ora os 89 deputados do PSD recolheram 1.732.118 – menos 15 mil do que o PS (que obteve 1.747.685).
    Assim: é urgente desmistificar a propaganda da direita sobre a “humilhante derrota do PS” e (de António Costa). A coligação de direita teve mais deputados, mas o PS foi o partido em que mais portugueses votaram.»

  3. Na alínea e) diz-se que o PSD é o partido mais votado. Não é, na verdade.
    De facto, o PS foi o partido mais votado.
    Cada um dos seus 86 deputados teve de recolher em média 20.312 votos.
    A cada um dos 107 deputados da PaF bastou uma média de 19.462 para ser eleito.
    Ora os 89 deputados do PSD recolheram 1.732.118 – menos 15 mil do que o PS, que obteve 1.747.685.
    Assim, é urgente desmistificar a propaganda da direita sobre a “humilhante derrota do PS” e de António Costa. A coligação de direita teve mais deputados, mas o PS foi o partido em que mais portugueses votaram.

  4. Ó meu rico Sto. António
    Meu santinho milagreiro
    Faz com que este governo
    Não me roube mais dinheiro
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2013/05/psd-tudo-levou-como-evoca-brecht.html

    É que da leitura que faço de tudo o que se passou os resultados eleitorais do dia 4 de Outubro de 2015 e em termos percentuais foram os seguintes:
    Partido Socialista – 32,38% – 1.747.685 – 86 deputados , (mais 15.000 que o PSD)
    Partido Social Democrata – 29, 87%(incluindo votos Madeira) – 89 deputados – 1.732.118 – (-15.000 que o PS)
    Bloco de Esquerda – 10,22% – 549.153 – 19 deputados
    CDS / Partido Popular – 8,81% – 18 deputados
    Coligação Democrática Unitária – 8,27% – 444.319 – 17 deputados
    PAN – 1,39% – 1 deputado
    PAF – (PSD/CDS) – 2.067.722 – menos – 300.000 -107 deputados (89± 18)
    PS – 1.747.685 – 86 deputados
    BE – 549.153 – 19 deputados
    CDU – (PC – Verdes) – 444.319 – 17 deputados
    Total – 230 deputados.
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2015/10/as-mentiras-de-passos-coelho.html

  5. Talvez Passos queira agora pegar de novo naquele crucifixo… É lamentável a gritaria da Direita perante a possibilidade de um Governo das Esquerdas. As únicas pessoas que li ou ouvi no campo da Direita e que mantiveram a serenidade e puseram o dedo na ferida foram João Miguel Tavares e Adolfo Mesquita Nunes. A pergunta a fazer sobre um acordo à Esquerda é se ele se realiza (não é nada certo) e se é sólido e resiste à tempestade que provavelmente aí vem. Seja como for, e como diz, quebrou o tabu da Convergência à Esquerda. Honra seja feita a Costa pelo risco que está a correr e que começou a correr no dia em que rejeitou o maldito conceito do ‘Arco da Governação’. Isto também mostra que a Política se faz com os protagonistas certos que sabem transformar dificuldades em oportunidades. Costa não sobreviverá provavelmente a mais um falhanço mas irá para o próximo Congresso vender cara a pele e mostrar que o que divide os Socialistas é mais do que uma mera disputa entre personalidades e equipas…

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