Quem foi que não pediu a troika?

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/09/2015)

Miguel Sousa Tavares

                            Miguel Sousa Tavares

(Nota: Normalmente não faço apreciações prévias sobre os textos que publico de outros autores, até porque concordo, no essencial, com o que publico. Contudo, este texto, com o qual concordo também no essencial, contém algumas premissas e apreciações que considero excessivas. Ainda assim, como é conhecido o estilo opinioso e truculento do autor – o que não deve ser tido como um defeito, nesta época de meias-tintas e de cobardias que tendem a esbater os contrastes ideológicos e políticos -, aqui fica o texto para que se debata e se reflita. )

Estátua de Sal, 19/09/2015


1 Foi a coligação PSD/CDS que resolveu introduzir o tema da vinda da troika na campanha eleitoral, julgando com isso marcar pontos através de um raciocínio linear: quem pediu assistência financeira para Portugal e assinou o acordo com a troika foi o Governo PS; logo, quem chamou a troika foi o PS. O argumento é falacioso, deturpado e assente naquela que é, infelizmente, uma característica nossa: a falta de memória.

De facto, foi o Governo PS que conduziu Portugal a uma situação de insolvência, quando o défice público chegou aos 10%. E, por isso, teve de pedir ajuda. E antes, foi o Governo PS quem quis vender sonhos milionários a um país pobre: TGV, aeroporto, três auto-estradas Porto-Lisboa, etc.; que deixou as empresas públicas e os seus défices em roda livre, fora do perímetro orçamental; que ofereceu mais mil milhões a Jardim para pagar danos cujo montante nunca foi demonstrado; que aumentou os funcionários públicos em 6% em ano de eleições; e mais uma série de bem-aventuranças que só nos podiam ter levado onde chegámos. Porém…

Porém, o segundo Governo Sócrates apanhou em cheio com as consequências da crise das dívidas soberanas, desencadeada pelo estouro da economia de casino fomentada nos Estados Unidos. Foi Sócrates quem ouviu então, da boca de Merkel, que os tempos não estavam para cortes, mas sim para políticas de expansão que evitassem uma crise global, como a de 29. E foi ele que, logo a seguir, ouviu a orientação oposta: cortar, cortar, cortar, só o controlo do défice público interessava. Durante esses anos de inconsciência final, não me lembro de ter ouvido alguém — partidos, empresários, banqueiros, gente da cultura, das FA — que pregasse consistentemente o corte da despesa do Estado.

Pelo contrário: se os governos de Sócrates fizeram auto-estradas e criaram uma imensa massa salarial no Estado, os governos de Cavaco haviam feito bem pior; se o Governo Sócrates sonhou com uma linha de TGV assumidamente condenada ao prejuízo, o Governo de Durão Barroso chegou a projectar seis (!). Alguém se lembra de ter ouvido o país ou os seus representantes pedirem menos hospitais, menos estradas, menos gastos com medicamentos, menos autarquias, menos institutos públicos?

Julgo que todos nos lembramos do que aconteceu no estertor final do segundo Governo Sócrates. Ele tinha vindo de Bruxelas e de Berlim com o apoio da UE e de Merkel ao PEC 4. Ninguém pode saber se mais um PEC teria sido suficiente para evitar o pedido de assistência e a vinda da troika, como sucedeu em Espanha. Mas, no imediato, que o teria evitado, isso é incontestável. Mas o PEC 4 foi chumbado no Parlamento por uma coligação contranatura entre a direita e a extrema esquerda. O PSD votou contra porque sabia que isso significava a queda do Governo e a possibilidade de voltar ao poder — o que de há muito constitui o único substracto ideológico do partido; o CDS votou contra porque Portas sentiu que tinha uma oportunidade rara de, através de eleições, arrumar com o fantasma do “partido do táxi” por alguns anos; o PCP votou contra e aliado à direita, porque, vivendo ainda em 1917, tem como principal inimigo qualquer governo do PS e como principal pesadelo o sucesso de um governo PS; e o BE votou contra porque Louçã não teve coragem nem liberdade para se abster. Derrotado o PEC 4 e derrubado o Governo, a situação financeira entrou, como era de prever, em descontrolo acelerado. Mesmo assim, José Sócrates ainda quis resistir e não se cansou de avisar o que significaria a vinda da troika. Mas, finalmente, já não havia nada a fazer: era chamar a troika ou cessar pagamentos. Basta ler os jornais de então para relembrar uma quase unanimidade nacional no apelo à troika — com excepção, é claro, do PCP e do BE, que, por direito divino, estão sempre dispensados de terem alternativas sérias para apagar os incêndios que ateiam.

Quem chamou a troika foram todos os partidos e, de certa forma, todos nós

Foi isto que aconteceu há quatro anos e meio. A discussão sobre os factos históricos então ocorridos só pode ser feita num quadro de desonestidade intelectual chocante. Concedo que a actual maioria foi exímia em distorcer os factos e apagar memórias ao longo destes anos, até chegar ao ponto em que Passos Coelho é capaz de exclamar, com um ar ofendido, que dizer que o PSD também chamou a troika é uma grosseira mentira. Mas, chamou sim, chamaram-na todos. Chamaram-na todos os partidos e, de certa forma, todos nós. Pelo menos, todos os que nunca cessaram de exigir mais e mais dos dinheiros públicos, sem quererem saber quem e como pagará a factura. Nem é tanto a tão criticada afirmação de que vivemos acima das nossas possibilidades. Não sei se vivemos ou não, cada um sabe de si e das suas dívidas. Mas sei que o Estado vive acima das nossas possibilidades. E é essa verdade que ninguém quer enfrentar.

2 Vejo o debate televisivo António Costa/Jerónimo de Sousa e, pela enésima vez, constato que ainda há socialistas que não se libertaram totalmente desse terrível complexo de esquerda que tantos danos nos tem causado ao longo dos anos. Com um ar de quem procurava sempre a aprovação do seu oponente, desdobrando-se em explicações para ele, António Costa fazia o papel do aluno que espera a compreensão do professor. E este, Jerónimo de Sousa, com um ar inquisidor enquanto ouvia, repetia banalidades e chavões em que já só os maiores de 80 anos acreditam, jurando que o que não falta é dinheiro para prometer o céu e a terra, bastando lançar mão “dos lucros escandalosos dos grandes grupos económicos”. Um governo do PCP levaria o país à ruína em três meses — qualquer criança de escola o consegue entender. Que António Costa esteja ali, atento e venerando, a ouvir os maiores dislates e as mais estafadas tiradas demagógicas, como se não lhe competisse desmascarar o discurso de Jerónimo de Sousa, dá que pensar.

3 Segunda-feira passada, correspondendo a um convite de Fátima Campos Ferreira — que há treze anos, com dificuldades que é difícil imaginar, põe no ar um programa que é verdadeiro serviço público — lá me apresentei para participar num debate sobre justiça e a politização da justiça. À chegada, descobri que os representantes das duas magistraturas judiciais tinham-se baldado à última hora, talvez temerosos da campanha que algumas figuras tristes do PS tinham lançado, ao longo do dia, contra a realização do programa. Como tinha passado o dia a trabalhar e, de resto, não frequento redes sociais (não tenho Facebook, nem Twiter, nem Instagram e outros que tais), ignorava por completo a ira que um debate sobre justiça tinha despertado em luminárias como José Lelo, ao ponto de o classificarem como “um tempo de antena da coligação PàF”. Eu ia, pois, completamente desprevenido, participar num tempo de antena do PàF! E isto porque o PS temia que o programa se resumisse ao “caso Sócrates” (que esteve longe de monopolizar o debate), mas que, para o PS, é tabu absoluto.

Ora, falemos claro: o “caso Sócrates” não tem que ver com a culpabilidade ou inocência dele, que é coisa que, pelo menos para mim, só se apurará em tribunal, produzida a prova e a contraprova. O “caso Sócrates”, no que tem de importante, não é, por enquanto, a questão de fundo, mas a questão instrumental: pode alguém ser preso com as televisões a filmar em directo, pode ficar preso com requintes de humilhação, como a história das botas ou do cachecol do Benfica, pode ficar preso nove meses sem acusação, enquanto todos os dias é publicamente linchado num julgamento popular feito nos jornais, através de uma indecente e descarada violação do segredo de Justiça e da banal presunção de inocência? O “caso Sócrates” é isto, e isto merece ser discutido, em quaisquer circunstâncias, aproveite a quem aproveitar, prejudique quem prejudicar. Escudado na hipócrita frase de “à justiça o que é da justiça”, o PS não apenas abandonou Sócrates à sua sorte, como finge não ver aquilo que é essencial: a questão de saber se para a Justiça vale tudo e qualquer método é aceitável, desde que escudado no julgamento popular — que é a forma como a investigação dos chamados “processos mediáticos” tantas vezes supera a sua incompetência investigatória. Que o PS queira que o homem fique muito caladinho para não prejudicar a campanha em curso, é entre eles e ele. Que queiram que todos os outros fiquem também muito caladinhos, ao serviço dos interesses circunstanciais do partido, é pedir de mais e sem vergonha.

5 pensamentos sobre “Quem foi que não pediu a troika?

  1. A crise foi e é eminentemente financeira, iniciada com a bolha imobiliária nos EUA e com uma resposta da Europa e dos seus principais dirigentes mediocre. Os défices Portugueses na altura estavam em linha com outros défices do resto da Europa (Bélgica, Espanha, Holanda e outros Países de Leste) o ponto fulcral foi o custo do dinheiro depois dessa crise fabricada.
    A Europa sobretudo depois do ano 2000 tem dado passos “seguros” para a sua implosão rápida. como facilmente se nota até na reação à crise dos refugiados. Pobre Europa. Muito pobres os deus dirigentes.

  2. Há um aspecto muito relevante que os analistas e comentadores políticos generalizadamente esquecem: as eleições e consequente mudança de governo na Alemanha após o eclodir da crise.
    Antes dessas eleições o governo, já liderado pela Srª Merkel, era de coligação CDU-SPD e a orientação de politica económica vinda da Europa foi expansionista e anti-ciclica (Keynesiana).
    Depois das eleições o Partido Liberal alemão ficou em segundo lugar, resultando daí um novo governo liderado novamente pela Srª Merkel mas de coligação CDU-Liberais.
    As politicas contracionistas, pro-ciclicas e troikistas, emergiram daí – para nossa desgraça – e refletiram-se em Portugal e demais países debilitados em fortes quebras do investimento público e da actividade económica em geral.
    A situação em Portugal foi ainda agravada,
    – primeiramente pela mudança de liderança no PSD em favor dos neoliberais liderados por Passos Coelho e em desfavor dos sociais democratas e
    – depois pela mudança no governo com ascensão ao poder desses neoliberais,
    – a que se juntaram os neoliberais do PP, desde há muito coveiros da democracia cristã fundadora desse partido..

  3. Obrigado Sr. Miguel Sousa Tavares,pelo esclarecimento que dá com o seu artigo mas este nosso povo raramente quer ver a realidade dos acontecimentos,cada um vei a sua maneira,por conveniencias,não pela realidade dos factos.

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