Dói-me Portugal

(José Pacheco Pereira, in Público, 05/09/2015)

Pacheco Pereira

             Pacheco Pereira

Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros.


O poema de Antonio Machado intitulado Españolito é, como muitos poemas seus, intraduzível.

Eugénio de Andrade dava os poemas de Antonio Machado como exemplo da impossibilidade, no caso da poesia, de encontrar noutra língua, não as palavras certas, o que ainda era possível, mas a “música” do poema, o modo como fluía o som dessas palavras. Por isso, aqui vai no original:

Ya hay un español que quiere

vivir y a vivir empieza,

entre una España que muere

y otra España que bosteza.

Españolito que vienes

al mundo te guarde Dios.

una de las dos Españas

ha de helarte el corazón.

É um poema sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da ferocidade da guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelar-te o coração”. Não é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra dessas “duas Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado francês, para onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.

O tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais” também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca, com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido tão “pacíficos” durante a crise.

Hoje, “dois Portugais” existem e vão a eleições. Um está à vista todos os dias, outro tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro “Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise” para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última razão.

Um dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.

As estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008, outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais pequenão abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal menor.)

Quem é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade. Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.

Há mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não. Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar. Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de pessoas. É muito português.

Voltemos aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos somar, várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter, é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas famílias. É muito português.

Depois, mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre, dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, despareceram as pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos humanos” extremos – a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água, nem luz – e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no início da década de 2000.

E aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança, ou seja desesperança. É muito português.

O discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”. Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam “economia”, pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente ilusão, porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado – tudo profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito: agravar as desigualdades sociais. Como se vê.

No grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”. Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das “jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores, gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos decasting, feérico e feliz.

Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros. Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios, porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à custa dos outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o coração”.

Direi pois, como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal.

9 pensamentos sobre “Dói-me Portugal

  1. Muito bonito. Outra vez este intelectual da trafulhice política com os seus saberes literários encher o espaço de jornais com jogos de espírito e prosas florais e, como bom aluno cavaquista, sacudindo a água do capote as suas mui-graves responsabilidades no estado actual da situação do país e no mundo.
    Recordo só algumas razões para que conste:
    – o seu apoio cego e seguidismo a cavaco, duarte lima, dias loureiro e outros da mesma laia, a sua reverência e subserviência cavaquista, hoje, maioritariamente reconhecido como o pior que aconteceu a Portugal pós 25A. Isto é, pacheco foi colaborador e fez parte do grupo, considerado hoje pela maioria dos portugueses, como o pior que existiu em Portugal.
    – o seu apoio à “asfixia democrática” de paulo rangel ao qual deu seguimento com uma severidade persecutória totalitarista (é da escola; António Guerreiro dixit) quer no seu blog quer na imprensa e em todas as oportunidades que teve de falar quando, hoje, cínica e desavergonhadamente vem-nos dizer que tal faz parte dum “vale-tudo”.
    Dito e feito, hoje, pelo sapinho rangel é o “vale-tudo”, ontem dito e feito pelo pacheco era a “verdade” da manuela a mesma “verdade” que antes fora de cavaco.
    – o seu apoio feroz ás teses de durão, aznar, bush e blair para justificar a invasão do Iraque, considerada a origem do mal que hoje chega diariamente à Europa mas, sobretudo, dos milhões de mortos que nunca puderam chegar à Europa nem a lado nenhum dentro de sua própria pátria.
    E continua, este sabichão de história e autores literários mas, politicamente, uma nulidade medíocre que só contribuiu para a ruína do país, chamando malfeitor e fazedor de malfeitorias a Sócrates sem sequer (tal como lobo xavier e todos da laia) apontar uma única ou dizer em que consistiram essas malfeitorias; pacheco falou, na altura, do “magalhães” mas, quando este governo passou a fazer de caixeiro viajante vendedor de “magalhães” pelo mundo, calou-se; falou das K7s onde, imaginem, viu claro fala na fita, tal como o vidal de Aveiro, um “atentado contra o Estado de Direito” mas quando o Procurador Geral e o Presidente do Supremo pediu para divulgarem as K7s para se perceber o ridículo do caso calou-se e meteu a viola no saco até hoje; o xavier papa-administrações fala da PT mas não diz em que consistiu tal malfeitoria mas nós sabemos; não ter deixado o seu patrão merceeiro fazer a negociata do século e passar a empresa para as mãos da Telefónica espanhola com quem estava feito.
    O pacheco enjoa, o pacheco já enjoa, porra!

    • Eu ia perguntar quanto tempo é que teríamos que esperar antes que o nosso comentador habitual viesse aqui dizer mal de Pacheco Pereira. Pois, parece que o Sr. José Neves antecipou-se e embora seja de cor política oposta, é interessante verificar que o vosso argumentário tem pontos em comum…

    • Ó Neves, já uma vez lhe disse e repito. O seu ódio ao Pacheco só tem equivalente no ódio que o João Miguel Tavares tem ao Sócrates. São dois casos clínicos a merecerem a atenção dos melhores psicanalistas. Que ressuscite Freud e talvez ainda se possam curar os dois.

    • O seu comentário foi eliminado. Não admito ataques ad hominem e insultos gratuitos e de baixo jaez no meu blog. Se quer discordar fundamente com urbanidade as suas opiniões. Mas aconselho-o a não reincidir nas suas diatribes e linguagem de carroceiro.

  2. Caro amigo Pacheco Pereira… doí-lhe o Portugal porque não entendeu que saiu de Portugal para ficar na Europa, e estando a Europa, está nessa massa informe com cabeça única que apregoa por todo o lado que é preciso cortar nos defícies, reduzir as despesas sociais, que o dinheiro gasto com a saúde é um desperdício (há muitas clínicas privada), dinheiro gasto com o ensino é irracional (com tantos bons colégios), temos que reduzir ainda mais o número de professores, que os velhos vivem demasiado tempo e que faziam bem de morrer depressa, que os agricultores têm que se contentar dos preços dados pelos consórsios da distribuição e que a ecologia pode esperar, seja qual for o preço a pagar com os distúrbios climáticos, e que a banca dicta as suas vontades porque o dinheiro é tudo ! E a fraude e a fuga fiscal bem organizada nãosaõ crimes, os paraísos fiscais podem prosperar, a justiça opera quando bom lhe apraza. A mim me doíem duas coisas: a política… e a Europa que queria outra.
    Bem haja.

    • Eu também queria outra Europa, e nada me aflige mais que o espectro do nacionalismo e da xenofobia que pretende fechar as fronteiras a quem precisa da nossa ajuda por causa de problemas que ajudamos a causar. Mas, face a esta Europa presente, eu acho que precisamos de exercer o Poder Popular que nos resta no local próprio, ou seja nos nossos Parlamentos Nacionais… E, em abono de Pacheco Pereira, convém dizer que ele foi uma das poucas vozes, que não sendo anti-Europeia, nos alertou em seu tempo para o perigo da Construção desta Europa que temos…

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