Restos de Verão

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 29/08/2015)

Miguel Sousa Tavares

                                 Miguel Sousa Tavares

1 Politicamente, os Verões perfeitos deveriam ser assim: aqueles em que não se passa nada, como este. Ou quase nada. Houve a aprovação do terceiro resgate à Grécia, o golpe palaciano de Erdogan na Turquia, a caminho de uma ditadura pessoal e confessional, e, com as águas do Mediterrâneo quietas, aumentou o êxodo do povo sírio para as fronteiras sul da Europa — uma nação que se esvai, fugindo do terrorismo do Daesh e do cinismo criminoso de Bashar al-Assad. Com a conivência da Turquia de Erdogan, apenas interessado em aproveitar o caos no vizinho do norte para prosseguir o massacre do povo estóico do Curdistão. Mas tudo se passou lá longe e foi, comparado com outros, um Verão sem sobressaltos. Apenas a pertinaz rotina de dramas longínquos e estranhos. Gente que se mata em nome de Deus e coisas assim.

2 Por cá, cumpri também a rotina habitual de um mês inteiro a olhar a nossa política com um olho no jornal e outro no mar. Jornais empilhados para não serem lidos nunca, telejornais esquecidos em troca da vigia às panelas e uma infinita pena dos que vão ao mercado não para olhar e escolher o melhor peixe do mundo, mas para informar os presentes de que a política estará de volta não tarda. Chego a estranhar que este infatigável vento norte, que arruína os nossos Verões, não varra por completo a política doméstica durante o Verão. A sensação que fica, depois de um mês em semi-hibernação informativa, é que não se passou nada que valesse a pena saber, não obstante os porfiados esforços da imprensa e dos políticos para nos fazer crer que as legislativas e as presidenciais são já ali ao virar da esquina e não há tempo a perder para começarmos a perceber as fundamentais diferenças entre o programa do Governo e o programa do PS. Ou entre as subtilezas estratégicas dos candidatos presidenciais — os que avançam já e os que se reservam para depois das legislativas, os que não podem esperar e os que têm de esperar, os que só avançam se o outro não avançar e vice-versa, ou a quadratura do círculo escolhida pela candidata Maria de Belém: por ora, e para não perturbar as legislativas, anuncia apenas que anunciará a candidatura depois delas. Desisto de continuar a tentar domesticar o jornal destroçado pela nortada e em vão tento resistir ao torpor mental que me invade. Dou comigo a pensar inadvertidamente que nada disto me interessa por aí além. Os programas eleitorais, quando não são deliberadamente ambíguos ou vazios de qualquer conteúdo concreto, não são para ser levados a sério nem cumpridos, uma vez no Governo. Não foi Passos Coelho que disse, há quatro anos, que o programa da troika era o programa do Governo? E não é esse mesmo Governo que agora se gaba de nos ter livrado das garras da horrível troika, que o PS chamou?

A solução aplicada à Grécia pela Alemanha, perante a passividade ou o apoio dos restantes membros da União, teve também o condão de reduzir o debate político e ideológico a uma única questão: a questão da dívida pública. E esta, por sua vez e como se viu na Grécia, só consente um de dois caminhos: ou a saída do euro e a miséria abrupta, não pagando, ou a morte por lenta asfixia, pagando e continuando a aplicar as leis que a Alemanha dita, com ou sem troika.

E, por isso, a esquerda está paralisada e incapaz de se unir no que quer que seja: o BE, que fundiu as suas esperanças e as suas ideias nas do Syriza, caiu num beco sem saída, não podendo propor o mesmo caminho nem renegá-lo; o PCP, com menos problemas de lógica e de ideologia, permanece entrincheirado na sua fortaleza de negação da realidade, propondo o que só os seus fiéis acreditam, e agora mais preocupado com a Festa do Avante! do que com tudo o resto; e o PS navega num vazio de alternativas claras e convincentes, disfarçando esse vazio com contas e mais contas que vai fazendo e refazendo, convencido de que o eleitorado acompanha o seu programa aritmético de governação. Mas mesmo a maioria, que tanto festeja e aproveita a rendição da Grécia, navega numa contradição: por um lado, diz agora horrores sobre a troika e louva-se de nos ter livrado dela, mas por outro lado diz ainda pior da tentativa dos gregos de se verem livres dela.

Quanto às presidenciais, continuo à espera do meu candidato: já me chegará alguém que jure defender as liberdades e a soberania nacional — o território, a língua, a paisagem, a independência financeira e económica. Dos muitos candidatos que estão em campo, reconheço em todos uma qualidade comum: nenhum deles se chama Cavaco Silva. Já é alguma coisa, mas não chega.

3 Recomendo que pesquisem na net a fantástica entrevista que o moçambicano Murade Murargy, secretário-executivo da CPLP, deu ao “Público” de 16 de Agosto. Se alguma dúvida me pudesse restar que, tal como sempre pensei, a CPLP não serve rigorosamente para nada, excepto para pagar umas reformas douradas a alguns ex-embaixadores dos países lusófonos, esta entrevista acabou de vez com as dúvidas. Mas uma coisa é a inutilidade, outra a indignidade. E a indignidade foi o que passou a vigorar na CPLP a partir da adesão, há um ano, da Guiné Equatorial. Um país chefiado por um bandido, onde havia dois falantes de português (agora há 7), foi entronizado membro da respeitável comunidade lusófona a troco de vagas promessas de negócios a levar a cabo num país onde os negócios são feitos com a família do Presidente, e outras vagas promessas de melhorias significativas no capítulo dos “direitos humanos”. Um ano depois, confrontado com a recente decisão do ditador equatorial de “dissolver a justiça” (!), o secretário-executivo da CPLP afirma que essa é “uma questão interna e… sem grande dimensão”. Olhem só que coisa de pasmar: um país membro de uma comunidade que se afirma regida pelo direito regride aos tempos do estado de barbárie e sua excelência acha que essa é uma questão menor e que o que é preciso é “ter paciência com a Guiné Equatorial”! Eu votaria num candidato a PR que prometesse tirar-nos desta fantochada.

4 Vem aí uma grande barraca: a venda do BES aos chineses a preço de liquidação. E ainda com condições de pagamento dependentes da solução dos contenciosos que a Resolução criou. Suponho que não seja politicamente recomendável perguntar, um ano depois, para onde foram os 4,9 mil milhões lá injectados e que, a somar aos capitais próprios então existentes e à limpeza do lixo incobrável, chutada para o “banco mau”, garantia, conforme jurado, um banco limpo, novo e com um futuro risonho. Onde foi que se enganaram desta vez?

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

Um pensamento sobre “Restos de Verão

  1. O Miguel Sousa Tavares, é imparável, diz o que tem a dizer e que está (com certeza) na mente de muitos portugueses, que nele se reveem e não tem maneira de o mostrar. Obrigada Miguel, adoro ouvi-lo e lê-lo.

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