O princípio do fim da Europa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/07/2015)

Miguel Sousa Tavares

                                 Miguel Sousa Tavares

Na madrugada do último domingo, após 17 horas de reuniões sucessivas entre os chefes de Governo do Eurogrupo, o dia amanheceu em Bruxelas com um denominado “acordo” sobre a questão grega, que, de facto, assinalou o começo do desmantelamento da União Europeia. A questão já nem é a inutilidade de um acordo em forma de diktat para a resolução dos problemas gregos: todos sabem que as medidas não vão funcionar, a fórmula está errada e já o provou duas vezes no passado, apenas tendo servido para aumentar a dívida e fazer recuar o PIB 26%. Mesmo ao preço de acabar de arruinar de vez o país, o acordo não é exequível: na melhor das hipóteses, será apenas um balão de oxigénio, até que a Grécia saia do euro pelo seu pé ou empurrada pela coligação dos países virtuosos do Norte e do Centro da Europa.

Mas a questão principal é outra e maior do que a Grécia. A Europa está a desmoronar-se à vista de nós todos — primeiro, através da zona euro e conduzida pelo Eurogrupo, formado pelos ministros das Finanças do euro (um órgão que nem sequer existe nos tratados europeus); e, depois, inevitavelmente, contaminando toda a UE (basta ter visto o desdém com que o premier inglês, David Cameron, discursou nos Comuns contra a possibilidade de a Inglaterra participar no terceiro resgate à Grécia). Todos funcionam à la carte, agora. Uns, como Portugal e Espanha, estão mais preocupados com as implicações em eleições internas do papel que desempenharem na crise grega do que em tentarem ser parte da solução comum. Outros, como a Hungria, resolvem construir um muro na fronteira com a Sérvia para impedir a chegada de emigrantes, sem dar satisfações a ninguém nem querer saber dos acordos ou dos esforços comunitários nessa matéria. A Finlândia, cuja utilidade para a Europa está por demonstrar, quer a expulsão da Grécia e depois vai querer a nossa e, provavelmente também, a da Espanha e da Itália. A Inglaterra ameaça só ficar na UE se lhe derem o filet mignon sem ossos. Juncker, o presidente da Comissão, que tem no currículo dez anos a presidir a um Governo luxemburguês que se especializou em roubar os países ajudando as suas multinacionais a fugir aos impostos, ora diz uma coisa quando lhe dão rebates de consciência, ora diz outra quando se cruza com a chancelerina Merkel.

Resta a Alemanha e, aparentemente, a Alemanha resolveu liquidar a Europa. Há muito que eu tenho dúvidas de que a Alemanha esteja interessada no projecto europeu — que nasceu para nos proteger da Alemanha e para proteger a Alemanha de si própria e dos seus demónios. No fundo, é o velho dilema alemão: demasiado grande para a Europa, demasiado pequena para o mundo. Julgo que só lhe interessa a Europa na medida em que for ela a ditar as regras e a colher o grosso dos lucros. E, apesar de ter sido e ser o grande financiador das necessidades e dos desastres alheios, ninguém também ganhou tanto com a Europa, e com os sucessivos e desastrosos alargamentos a leste, impulsionados por Berlim, como a Alemanha. Ganhou com os fundos comunitários, que funcionaram como uma espécie de Plano Marshall a favor das empresas alemãs; ganhou com o euro, impondo as regras comuns que lhe interessavam e boicotando as que não lhe interessam; ganhou com o endividamento da Grécia — e os seus bancos ganharam tanto e tão avidamente que foi preciso um segundo resgate à Grécia, que, na verdade, foi um resgate à banca alemã e aos créditos incobráveis que esta detinha na Grécia. O famoso eixo franco-alemão só existiu, de facto, quando a Alemanha ainda não podia abrir o jogo por completo e precisava de fingir que partilhava o poder europeu com alguém — estando a Inglaterra voluntariamente alheada e eternamente desconfiada. Mas domingo passado, pela mão de Wolfgang Schauble, a Alemanha deixou cair a máscara. E o que vimos foi o pior da Alemanha: a arrogância, a insensibilidade, a vontade de punir e humilhar os mais fracos. É verdade que Hollande, com o apoio único da Itália, ainda teve a força e o sobressalto de dignidade para recusar a pura e simples expulsão da Grécia, como Schauble defendeu. Mas a Grécia estará fora, mais cedo ou mais tarde: assim que o fundo de privatizações, imposto por Schauble e garantido pelo penhor de bens públicos gregos tenha garantido um número simpático de vendas a preço de saldo e a favor de empresas alemãs e outras. Chegou-se mesmo ao ponto de começar a fazer um pré-esboço de arrolamento dos bens, de onde consta até um terreno público a licenciar e urbanizar numa ilha. Capitulação e pilhagem, como na Idade Média. Não há outro caminho para Tsipras do que preparar-se para romper antes que eles o façam.

Mas, mesmo com a Grécia de fora, a história não acabará aí, porque vai seguir-se a desintegração europeia ou a capitulação de todos às mãos da Alemanha. Não dá para esquecer o que se passou domingo, em Bruxelas. O ódio na cara de Schauble, o desprezo, que ele nem tentou disfarçar, pelos ‘pigs’ gregos. Parecia a história a repetir-se, mas, como dizia Helmut Schmidt há uns três anos (ainda a procissão ia no adro), Merkel devia estar preocupada porque o sentimento antialemão crescia dia a dia na Europa e, sempre que isso acontece, dizia ele, a Alemanha vai sofrer. No fim, vai sofrer.

Chegou a altura de abrirmos um debate sério, sem preconceitos nem simplismos, sobre nossa permanência no europa

Claro que a Grécia tem culpas, imensas, indisfarçáveis — sobretudo, os amigos gregos das empresas alemãs e outras, que a governaram e arruinaram nos últimos vinte anos. Claro que a Grécia tem de fazer reformas sérias e duras, que, tal como nós, ponham o país a viver com o que tem e o Estado a gastar o que conseguir cobrar sem matar a economia. O país faz-de-conta acabou e os gregos estão conscientes disso. E claro que o Governo do Syriza subestimou o adversário, mediu mal os apoios que julgava ter e adoptou uma estratégia negocial por vezes quase suicida.

Mas não era preciso humilhar e punir a Grécia por se ter endividado e ter eleito um Governo que ousou pôr em causa a política do Eurogrupo e dos sagrados interesses dos credores. Humilhar, punir e condenar à miséria eterna. Ao querer castigar e humilhar um Governo — homens concretos de que não gostavam e cujo estilo lhes parecia uma heresia — esqueceram-se que eles tinham sido eleitos e que, por detrás deles, estava um povo. Que, de caminho, foi espezinhado e desdenhado, como se a sua vontade para nada contasse. E, assim, foi muito mais do que a Grécia que eles submeteram. Doravante, todos sabemos qual é o actual rosto da Europa. E não se recomenda.

Sempre fui grande defensor da Europa, do euro e de Maastricht. Ao contrário de alguns que agora afinam pela orquestra de Berlim e que antes denunciavam o euro como uma intolerável perda de soberania, a mim as regras fundamentais do euro pareceram-me inatacáveis: inflação dominada, juros baixos, défice público controlado. Mas uma moeda única sem Estado central federal era uma experiência nova e a experiência revelou-se uma armadilha para os países mais fracos economicamente: aumentaram as divergências, as dificuldades de competir em condições de desigualdade, a impossibilidade de sustentar uma dívida cujas labaredas se alimentam a si próprias, num anel de fogo sem saída.

Depois da Grécia, depois do espectáculo europeu de domingo, penso que chegou a altura de abrirmos um debate sério, sem preconceitos nem simplismos, sobre a nossa permanência no euro. “Quem sabe, faz a hora; não espera acontecer”.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

12 pensamentos sobre “O princípio do fim da Europa

  1. A demagogia dos países que têm contribuído para a “solidariedade” comum com défices ano após ano, é mesmo de líricos, aldrabões ou demagogos compulsivos.

  2. A meu ver e olhando o que a Historia nos conta, a Alemanha, sempre foi um país que aspirava dominar a Europa ( e, se pudesse, o resto do mundo), tentou através de guerras e não conseguiu, mas agora tem outra estratégia – a económica – é através da economia e “diplomacia” que a Alemanha mais uma vez deu a volta à Europa. Mas que raios andam a fazer os outros países que não viram que a Alemanha jamais deveria ter entrado na UE?? E já que a deixaram entrar porque deram puder à Alemanha para que fosse um país dominante? No pós guerra houve apoio da Europa para que a Alemanha se pudesse reerguer, apesar de todos os saques que esta fez nos países que invadiu e agora que há um país que, por outros motivos, está numa situação igualmente periclitante quer pôr a Grécia fora da UE, ora quem está mal mude-se, a Alemanha que saia (e outros que tais) e deixem os outros países trabalharem com democracia e sem ditadorismos.

  3. Nem sempre concordei com o que o Miguel diz, mas isso é democracia. O facto de eu discordar não impede o seu direito de expressar a sua opinião, mesmo que tenha um acesso privilegiado aos meios de comunicação. Mas a sua análise é muito realista e a sem sombra de dúvidas a análise mais séria e correcta que li nos últimos tempos na comunicação social, que passa o tempo a fazer dos Gregos os maus da fita e escondem os problemas e os podres da Europa. Penso no entanto que Portugal e a maioria dos portugueses vive ainda uma realidade fictícia baseada em demagogias passadas pelos media portugueses. A questão agora que paira no ar é: sabendo o que sabemos, e sabendo que a maioria dos portugueses prefere ser guiado nas opiniões dos média, ao invés de criticar o que lê e procurar informação, quando dermos o passo em frente (agora que estamos à beira do precipício), a culpa vai ser de quem ? Dos Gregos que já estão em queda livre ? Dos Alemães que deram o empurrão? Do Sócrates que aparentemente é a encarnação do mal? Dos Portugueses que aparentemente andaram a viver acima das suas possibilidades ( apesar de nunca terem sido perdidos nem achados nas decisões políticas tomadas pelos sucessivos governos nos últimos 30 anos)? Ou será que é da Europa que continua a brincar ao monopólio ?…..e já agora…alguém já pensou no plano B?

  4. Este senhor não temo moral nenhuma para emitir opinião. Alguém que tenha no Youtube os seus comentários aquando do incumprimento do déficit por parte de Alemanha e França, e o o dito cavalheiro, opinou que também era melhor alguém cobrar à Alemanha, o maior contribuidor para os fundos europeus – parece que agora tomou consciência que lucrou com essas contribuições- ou seja, o excelso jornalista parece opinar para onde dá o vento, ao contrário do que afirma. Como pode o mesmo – ou alguém – defender Maastricht, quando foi a pulverização dos estados nação, implícita nesse tratado que teve fortes reservas de pequenos países como a Dinamarca, e vir só agora defender que a permanência no Euro tem de ser repensada. NADA disto é novo, o II Reich, a constituição da federação alemã operou de forma semelhante na absorção de estados mais renitentes, os alemães limitam-se a repetir a história, e os portugueses, provincianamente a ignorá-la.

  5. Interessante seria entender porque a Alemanha conseguiu a actual posição… Terá sido por ter “facilitado” dinheiro aparentemente “fácil”, e “todos” embarcaram nos facilitismos propostos?
    Outra questão, algo leviana que se propaga…a Alemanha fora …. e … os restantes a quem soube muito bem andar de mão estendida? Vamos reduzir o “euro” à fome e à vontade de comer? Julgo que sem mudar o actual cenário económico em que se vive, é uma uma autêntica heresia ( mais uma), propor a saída de quem muito, mas “mal”, patrocina este Carnaval.
    Salvo melhor opinião…acabar com a dependência, alterando o paradigma, e só depois….. bem, se calhar não será necessário propor a saída de ninguém. Tão simples como respeitar a ordem dos acontecimentos… causa vs consequência. Digo eu.

  6. Fala o sr.Miguel Sousa Tavares, quais as medidas apresentadas pela Grécia para obter mais e mais dinheiro, e volto a salientar o nosso caso, da Irlanda e da Espanha. Não entendo a posição desse senhor ( que supostamente também não tinha dinheiro aplicado no Bes em papel comercial. Coitadinho, tão inteligente para uma coisas e para outras….. Esqueceu-se também do Pós .Guerra 1945, das condições impostas a Alemanha e a humilhação do povo alemão que foi contra a guerra e levou de tabela, como se costuma dizer.

    • Mariana:
      Todos, mas todos, os Alemães foram coniventes com a guerra e o holocausto (olharam sempre para o lado). E as condições postas ao povo alemão????? Plano Marshall, perdão de dívida, etc., etc. E as condições postas aos milhões que morreram nas câmaras de gás, que não na guerra, em Auschwitz, Dachau, e que não tiveram volta? A Senhora está a brincar ou é mesmo muito Burra?

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