Algumas perguntas do “Não” grego

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 10/07/2015)

Pacheco Pereira

               Pacheco Pereira

Democracia, liberdade e soberania

Os gregos estão a levantar na prática a mais importante questão europeia em tempos de paz: a construção europeia está a fazer -se contra a democracia e só no espaço soberano é que ainda resiste alguma democracia. A questão da soberania na Europa de hoje é essencialmente a questão da democracia. No meu país eu ainda mando, embora cada vez menos; na Europa, só os mais poderosos, como os alemães, mandam. O meu voto já não decide os orçamentos, mas sim os burocratas de Bruxelas e os seus mandantes políticos. Estamos, como na revolução americana, “no taxation without representation”.

O que é mais importante no processo grego, a “esquerda” radical ou a “dignidade dos gregos”?
Uma das razões por que os grupos mais à esquerda tiveram muitas dificuldades em mobilizar e apoiar a causa grega é que acentuaram a questão da “esquerda” mais do que a questão da soberania grega afrontada. Bem vistas as coisas, e se não houvesse o conflito com a Europa, a maioria das posições do Syriza expressas nos últimos meses são quando muito social-democratas moderadas ou keynesianas. O que hoje transporta a acusação de “radicalismo” não é o que os gregos pretendem como medidas de governação, mas o facto de não aceitarem ser governados por estrangeiros. Ao que chegámos.

Qual foi o papel do patriotismo na vitória do “não”?
Foi essencial. Os críticos dos gregos acentuam a “recusa da austeridade”, mas penso que estão enganados, e não é por inocência. Na verdade, os gregos sabem bem demais que o “não” vai ter custos e por isso a sua motivação está longe de ser egoísta, a única que uma certa direita compreende. Não, a sua motivação é acima de tudo patriótica e o patriotismo é o fantasma que assola uma direita que encontrou no “europeísmo” um acrescento de poder para cumprir o seu programa social.

Qual é o papel dos partidos políticos europeus?
Tem-se assistido nos últimos anos a um crescendo de poder de entidades multinacionais como são os partidos políticos europeus, como é o caso dos PSE e do PPE. Esse poder que originalmente se concentrava no Parlamento Europeu tem vindo a deslocar-se para o Conselho, à medida que a Comissão se enfraquece. Como há muitos anos afirmo, o fortalecimento do Conselho (e do Parlamento) e o enfraquecimento da Comissão é a grande razão, do ponto de vista institucional, para a crise do projecto europeu. A crise preencheu essa mudança institucional com uma clara hegemonia do PPE na política europeia, a que os socialistas soçobraram.

Qual é o papel do “europeísmo” na hegemonia do PPE?
O precursor ideológico da actual hegemonia da direita mais à direita e dos socialistas de serviço foi o “europeísmo”, ou seja, uma mescla de utopismo europeu, de federalismo, que matou as diferenças políticas e tornou a não democracia europeia numa antidemocracia. Esse “europeísmo” tinha raízes muito fortes na Alemanha, que projectava para a Europa o federalismo dos seu länder e nalguns partidos fundadores do PPE como a democracia cristã italiana, e isso fez do PPE o ponta -de -lança político que utilizou melhor as instituições europeias esvaziando-as do conteúdo solidário original. Os socialistas, em perda eleitoral, alinharam com o PPE para combater a contestação populista contra os seus governos, corruptos como em Espanha e na Grécia, incompetentes em muitos outros países, e acabaram por cair na armadilha do Tratado Orçamental.

Democracia grega versus democracias europeias – a palavra democracia é usada do mesmo modo?
Não. O argumento é colocar a democracia grega que se reconhece existir em comparação com as putativas democracias dos outros Estados europeus nesta matéria. É uma pobre comparação, como se fosse a mesma coisa. Não é.

Na França, em Espanha, em Portugal, os governos nunca colocaram aos eleitores nada de parecido com qualquer posição sua face à Europa que legitimasse serem contra os gregos. Bem pelo contrário, a política europeia é retirada do poder dos eleitores, funciona como secreta e foge deliberadamente do voto, aliás com dolo, como aconteceu com o Tratado de Lisboa, que é um remake disfarçado da Constituição Europeia chumbada em dois referendos e depois metida no bolso. Mais: governos como o francês, o português e o espanhol foram eleitos com discursos eleitorais muito diferentes das suas práticas. São governos legítimos, mas a comparação da sua legitimidade, importante mas formal, com a legitimidade substancial do voto grego empalidece-os.

Só os gregos votaram sobre a Europa, depois de os franceses e os holandeses terem chumbado a Constituição. Ou seja, sempre que votam os europeus votam de forma diferente daquela que os “europeístas” desejam. Por isso foge-se do voto como o diabo da cruz.

É verdade que nos países nórdicos e nos bálticos, e nos novos países que aderiram à UE com o fim do comunismo, há mais legitimidade para considerar que o seu discurso antigrego foi sufragado nas urnas. Partidos como os (ex-)Verdadeiros Finlandeses têm tido esse discurso às claras, mas agora o partido finlandês, que é apresentado como legitimador da recusa do apoio à Grécia em nome da democracia dos “outros”, era ainda há pouco tempo colocado no lote antieuropeísta como a Frente Nacional e o UKIP.

Usar esta argumentação em Portugal então é quase do domínio da traição.

Alguém duvida que quando Portugal precisar de alguma coisa, ouvirá os mesmos argumentos que os mandriões dos gregos? Não só já os ouviu, como os ouve, como os ouvirá. Os nossos governantes estão é de cócoras para agradar aos mandantes. Os gregos estão de pé.

O que é que incomoda, e muito, na vitória do “não”?
Hoje, falar em patriotismo incomoda e muito os das bandeirinhas na lapela. O patriotismo grego, a afirmação de que em nós mandamos nós, a consciência de um povo de que o que lhe querem impor não resulta, e é iníquo porque responde a interesses peculiares e não ao interesse geral nem europeu, nem grego, é uma gigantesca bofetada em políticos que decidem, em políticos que obedecem, em economistas, think tanks e jornalistas do “ajustamento”. É vê-los torcerem -se todos em público, nas televisões, nos jornais, nos blogues, etc.

A sua resposta é a da vingança.

4 pensamentos sobre “Algumas perguntas do “Não” grego

  1. Até concordo com o Pacheco Pereira. Mas as divagações que houve no Governo Grego, a saída do Varoufakis pela porta do cavalo, deu a ideia dum comportamento errático, sem uma programação pré definida, e um objectivo traçado.

  2. Chamar democracia a decidir sobre o dinheiro que os outros vão pagar parece-me exagero filosófico.
    Já chamar falta de liberdade dos povos de não poderem seguir o caminho que votam porque não têm dinheiro parece-me uma falta de vergonha na argumentação; de tanto repetida já nem um laivo de contrariedade e vergonha provoca. E dizem isso sem se rirem!!

    • Sabe, em democracia temos de aprender a lidar com os “exageros filosóficos” dos outros. Por exemplo, o Relvas conseguiu o exagero filosófico de se licenciar sem frequentar as aulas. Mas ao que parece isso não o impediu de ser co-autor de livros de ficção histórica, em que se pretende fazer de conta que a lamentável sucessão de trapalhadas com que este governo nos tem brindado, afinal, segundo estes ilustres senhores – que inclusivamente dizem isso sem se rirem!; foi na verdade um combate travado contra sucesso que nos livrou de uma tragédia grega. Esta falta de vergonha na argumentação deveria, de facto, conhecer limites.

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