QUEM TEM MEDO DA DEMOCRACIA?

(Estátua de Sal, 05/0/2015)

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A Grécia deu hoje uma lição de democracia à Europa e a todos os  poderosos e  falsos democratas que teimam em impor as suas regras, sem escrutínio nem transparência, nas costas dos povos. Assim aconteceu com a adesão ao Euro na maioria dos países e recentemente com a assinatura do Tratado Orçamental. As elites políticas consideram que os povos não devem ser chamados a pronunciar-se sobre tão abstrusas questões, como sejam a introdução de uma nova moeda ou um tratado que limita os deficits orçamentais e a dívida pública. Contudo, a aplicação de tais instrumentos é usada para justificar os cortes de salários e pensões das populações, a redução nos orçamentos da saúde e da educação, a desarticulação do Estado Social e o aumento do desemprego e a miséria. Ou seja, o povo não pode decidir sobre a aplicação de tais instrumentos mas pode sofrer sem contestação, e sem alternativa, o empobrecimento progressivo que daí decorre.

Quando este referendo foi anunciado, os poderosos sentiram que as políticas de austeridade que tem sido usadas para subjugar os países periféricos, sacando-lhes os recursos humanos e financeiros, as suas empresas e os seus ativos mais valiosos, podiam ser postas em causa através do voto popular.

Se as soluções que a Europa tem servido, qual presente envenenado aos países intervencionados, são assim tão boas e solidárias, como tem sido apregoadas pelos eurocratas e suas poderosas câmaras de eco, porque haveriam de ter receio que o povo fosse consultado a sufraga-las?

Durante uma semana, a Grécia foi ameaçada e chantageada em toda a linha. Bancos fechados, controle de capitais e levantamentos, em paralelo com uma manipulação gigantesca da informação. Era o dilúvio, era o caos, era a fome, era a miséria, se o voto no Não triunfasse. Táticas pérfidas, de máfias encartadas.

Pois bem. O Não triunfou, apesar de todas as ameaças e das falsas sondagens que foram sendo anunciadas que davam sempre um empate técnico. Existindo uma diferença de, à volta de 23%, de diferença entre o sim e o não, nunca poderiam as sondagens revelar um empate técnico, a não ser com o objetivo de manipular a opinião pública e influenciar desse modo o resultado do referendo. As ameaças vieram de Merkel, de Juncker, do falsário de teses Dijsselbloem, e pasme-se mesmo, de Martin Schulz, esse lobo socialista com pele de cordeiro, tão amigo da Grécia que era, e que agora diz que a vitória do não obriga à introdução de uma nova moeda.

Aqui chegados, quais os cenários que se podem prefigurar nos desenvolvimentos da situação? Vejamos os dados do problema.

  1. A Grécia tem uma situação de disfunção social gravíssima, desemprego na casa dos milhões, queda de um quarto do PIB desde o início do programa de ajustamento, uma dívida de 180% do PIB.
  2. Tal cenário foi consequência das receitas económicas que foram impostas ao país durante os dois resgates, e que agora se pretendiam reforçar com a realização do acordo, proposto pelos credores sob a forma de ultimato, e que foi largamente recusado pelo povo grego.
  3. Mas a Grécia não tem moeda própria, é membro de pleno direito da zona euro e o funcionamento de uma economia monetária não pode ocorrer sem que os bancos sejam quotidianamente alimentados por notas e moedas para fazerem face à manutenção dos seus níveis de reservas. Acresce que as exigências de reservas, por parte do sistema bancário, aumentam exponencialmente nos momentos de crise económica e de incerteza, como é o momento atual. Logo, a Grécia precisa, de imediato, de liquidez para que possa reabrir os seus bancos e normalizar o funcionamento da economia. O BCE, de acordo com as suas próprias regras, dificilmente poderá negar aos bancos gregos esse financiamento de curto prazo. Note-se que, tais financiamentos, não são empréstimos ao país, mas sim apenas decorrem do cumprimento das obrigações de prestamista em última instância do BCE, plasmadas nos seus próprios estatutos.
  4. Quanto à Europa, o novelo em que se colocou é quase inenarrável. Recusa-se a discutir cenários de reestruturação da dívida grega e de implementação de políticas macroeconómicas que permitam à Grécia crescer e pagar o que deve. Tal atitude é tanto mais suspeita quanto a posição racional de um credor é receber aquilo que lhe é devido e só pode receber se o credor puder sobreviver. Neste aspeto, o FMI, seguindo as imposições de Obama, teve que vir a terreiro revelar um estudo que fundamenta, preto no branco, que a dívida grega é impagável, que a reestruturação é imperativa, e os credores oficiais (leia-se as instituições europeias), devem, desde já, preparar-se para aceitar perdas com o processo.
  5. Recusa-se a levar em conta a crise humanitária que assola a Grécia de lés-a-lés, os milhões de pobres, os milhares de desempregados sem subsídios de desemprego e sem acesso a cuidados de saúde.
  6. Recusa-se a assumir os falhanços dos programas de ajustamento que impôs à Grécia e que só pioraram a situação que, supostamente, pretendiam mitigar, e as alternativas que continua a propor são, pasme-se, o incremento dos ditos programas.Assim sendo, que soluções podem ser encontradas?
  1. A primeira hipótese decorreria da existência de uma Europa que funcionasse de acordo com os princípios que subjazeram à criação da Europa e aos Tratados da União, seria a Europa mudar a sua forma de ajudar os países em dificuldades as quais derivam, no essencial, dos choques assimétricos que decorrem das imperfeições da união económica e monetária e da própria arquitetura do Euro. Isto é, deixar de utilizar o garrote da austeridade para subjugar os países em dificuldades, sugando-lhes os recursos, a favor dos de maior poderio económico.
  2. Porque é uma falácia falar-se de uma ajuda a um país quando se empresta dinheiro a esse país. Ajuda seria, sim, se não se cobrassem juros, ou se o dinheiro emprestado fosse enviado a fundo perdido, e se a maioria desse dinheiro não regressasse de imediato ao bolso das empresas e bancos dos países credores. Até ao momento, nada indica que esta hipótese tenha viabilidade, tendo em conta a agenda europeia e os seus antecedentes recentes. A solidariedade europeia tem sido uma solidariedade de hienas, em que os programas de austeridade promovem transferências colossais de recursos e riqueza da periferia para o centro.
  3. A segunda hipótese é a União Europeia manter-se inflexível nas negociações, persistindo na implementação do acordo que foi recusado pelo povo grego de forma expressiva – eventualmente com variantes de pormenor -, o qual só pode ser recusado por Tsipras, agora com maior legitimidade. Nesse cenário, por razões geoestratégicas, e até para evitar as expectáveis turbulências nos mercados – que a UE teme, mas que recorrentemente minimiza -, a Europa poderá, isso sim, aceitar a negociação de um programa de financiamento de curto-prazo, que permita à Grécia, no entretanto, emitir a sua própria moeda, sair do Euro e manter a sua presença na União Europeia e na NATO. Seria, assim, uma saída controlada, com apoio, tentando evitar-se uma catástrofe social e económica de dimensões dantescas e consequências imprevisíveis.
  4. A terceira hipótese, a mais dramática mas que não deixa de ser plausível, tendo em conta o perfil ditatorial e chantagista dos líderes europeus, é a Europa fechar a porta a qualquer acordo que seja compatível com a vontade democrática do povo grego, promovendo a desarticulação total da economia e da sociedade gregas, para que o regime democrático seja cancelado através de um golpe militar, mais ou menos soft – dependerá da resistência popular que existir –, que coloque no poder um governo de tecnocratas e colaboracionistas que possam continuar, e implementar pela força, as medidas de austeridade que o Povo recusou. Esta solução tem muito mais adeptos do que se possa julgar e será, seguramente, a preferida do impiedoso e sinistro Ministro das Finanças alemão, Schäuble. Para as cúpulas dos eurocratas europeus, para Merkel e seguidores, teria a vantagem de acabar de vez, no imediato, com qualquer veleidade de recusa das políticas de austeridade, em qualquer outro país europeu, pela via eleitoral: uma espécie de vacina para a “syrizite” aguda.

Qualquer dos cenários pode abrir uma caixa de Pandora de consequências imprevisíveis. O último deles, será a prova clara e óbvia de que a Europa do Euro não é compatível com a democracia parlamentar, mesmo com todas as limitações que ela encerra. Será a prova clara e óbvia de que a arquitetura do Euro resultou de um voluntarismo extremado, uma espécie de utopia falhada que assenta numa colaboração, confiança e solidariedade entre estados-membros que manifestamente não existe. Enquanto a União Europeia não passou de uma zona de comércio livre e existiram ganhos recíprocos nas trocas entre os países, não existiram dissensões de monta na arquitetura europeia.

A criação do Euro, sem harmonização fiscal, sem orçamento comum, sem união bancária, sem um Banco Central que funcione como prestamista em última instância para os Estados, a não ser através da mediação da banca privada, (como se a banca privada fosse mais credível e confiável que os Estados, quando os estados são sempre chamados a salvá-la quando esta entra em colapso), é um absurdo económico que só pode conduzir ao desastre.

Mas, mais grave que cometer erros, é não os reconhecer e persistir em continuá-los. É neste quadro que a União Europeia continua a querer movimentar-se, contra tudo, contra todos, contra a sua própria História, contra a sua própria génese, contra os seus próprios fundamentos originais, contra os seus próprios povos.

Estátua de Sal, 05/07/2015.

3 pensamentos sobre “QUEM TEM MEDO DA DEMOCRACIA?

  1. Um ou dois factos são seguros : os países periféricos vêem a sua dívida em constante aumentação e os benefícios sociais desaparecer aos poucos. Portanto, esta política não produz efeitos positivos para as populações…No entanto os bancos sempre são salvos ou resgatados (com os orçamentos dos estados, por nós afinal).
    Também digo NÂO a esta Europa…. definitivamente!

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