(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 29/06/2015)
Há muitos muitos anos havia em Portugal uns textos magníficos. Eram as redações da Guidinha, escritas por Luís de Sttau Monteiro e publicadas primeiro no suplemento do Diário de Lisboa, «A Mosca», e mais tarde em O Jornal. Ora se a Guidinha voltasse a escrever redações, escreveria algo assim sobre acontecimentos da semana passada.
Aqui no bairro da Graça onde vivo há muitos anos somos todos muito amigos uns dos outros e os vizinhos ajudam-se muito e sempre que é preciso ovos ou farinha a minha mãe manda pedir-me ao dr. Rui, que vive num grande palacete ao pé de nós e onde trabalha do raiar do dia até muito depois do pôr-do-sol, sempre a receber pessoas que falam línguas muito diferentes mas ele sabe todas e é só cumprimentos e mesuras e agradecimentos e então para os amigos angolanos não há mãos a medir é sempre a curvar-se a recuar a andar de lado a dizer palavras caras mas não deixa por isso de ser um excelente vizinho e como digo o dr. Rui empresta-nos sempre ovos e farinha quando vou lá pedir-lhos embora nunca venha saltar a fogueira no Santo António nem comer umas castanhitas.
Pois agora ainda andamos mais contentes com o dr. Rui porque havia um grande problema cá no bairro e o dr. Rui fez de McGyver e resolveu tudo num abrir e fechar de olhos. Era o caso dos filhos do senhor Jerónimo e do senhor Moniz,o Bertinho e o Tó, que são jovens de muito valor e estudaram que se fartaram e já deram muito ao país e a este governo então nem se fala, o Bertinho parece um mouro como chefe de gabinete do senhor que manda no país e que acho que se chama Pedro e o Tó faz a mesma coisa mas no gabinete do dr. Rui.
Ora como os santos estão a acabar, lá diz a canção, «Santo António já se acabou / o São Pedro está a acabar / São João São João dá cá um balão para eu brincar», o dr. Rui quis acautelar o futuro dos moços, que merecem sinecuras e prebendas depois de tanta entrega à Pátria. Mas onde se o emprego de qualidade escasseia, apesar de estar tudo muito melhor, como se sabe? Vai daí, o dr. Rui tirou da caneta e despachou duas ordens: na primeira colocou o Tó, que tanto o tem ajudado, como cônsul-geral em Paris; e depois, como o senhor que manda nisto tudo e também aqui na Graça, o senhor Pedro, lhe tenha telefonado a dizer que assim ficava o Bertinho sem emprego e ele já lhe tinha dito que iria para Paris e não podia voltar com a palavra atrás e até ficava mal visto, o dr. Rui disse-lhe que descansasse e tirou outra vez da caneta e zás catrapaz pás pás, e vá de colocar o Bertinho como embaixador de Portugal na Unesco, que também fica em Paris e até tem melhores instalações e vista mais aprazível para o Sena e sempre se pode ir a pé até ao Louvre e olhar as velharias e as novidades dos «bouquinistes».
E porque é que eu digo que o dr. Rui parece o McGyver? Ora porque depois de ter resolvido o caso do Tó, arranjando um problema ao Pedro e ao Bertinho, resolveu o problema ao Pedro e ao Bertinho, desautorizando o dr. Paulo, de quem nunca gostou particularmente, porque houve uma vez que ele lhe fez uma grande partida e escreveu umas coisas desagradáveis a seu respeito quando era jornalista. E para lhe mostrar que também tem muito poder, o dr. Machete vá de começar a abrir o que o dr. Paulo andou a fechar nos últimos quatro anos, as embaixadas da Unesco, Bruxelas e Nova Iorque, que são sempre sítios onde se vive confortavelmente, grandes casarões com lareira e tudo para os dias de chuva e podem comer-se crepes e «escargots», «moules» à fartazana e ir ver o Woody Allen nalgum bar de jazz da cidade que nunca dorme.
A minha mãe está a dizer-me para ir pedir ao dr. Rui que já que reabre tudo, para ele reabrir a mercearia da esquina, que dava tanto jeito e fechou, e assim sempre se arranjava emprego para o meu irmão, que por agora não tem nada que fazer e até anda a pensar emigrar, como o dr. Pedro diz que não disse.
Mas se o dr. Rui agora faz um figurão lá no bairro, o outro vizinho que mora na Horta Seca anda um pouco mais cabisbaixo. É o António das taxas e das taxinhas, como é conhecido, que disse que não tinha pedido a ninguém dos serviços para estudar o programa eleitoral do PS, e disse-o na sexta-feira com aquela voz forte e convicta que tão bem lhe fica, e pelos vistos só o avisaram no sábado, que afinal tem lá uns diretores-gerais particularmente empenhados e azougados que fizeram mesmo o que ele disse que não tinha sido feito mas nós gostamos muito do António das taxas e das tachinhas e perdoamos-lhe tudo e já o estivemos a confortar porque ele é um moço muito trabalhador e divertido e também é amigo do dr. Paulo e todos dizem cá no bairro que o António está ainda guardado para grandes voos.
O mesmo aconteceu à Paulinha, mas aí foi mesmo do gabinete dela que resolveram estudar as propostas do PS e não se percebe o alvoroço já que se está sempre a dizer que as pessoas não trabalham e estes trabalham tanto e mais do que lhes pedem, ou pelo menos do que lhes pediu a Paulinha, e não faz sentido virem agora criticar os moços por causa do empenho e da dedicação e o programa dos rosinhas tem de ser muito bem estudado porque aquilo deve ter por lá grandes maroscas e é preciso alertar o povo para os perigos que dali podem vir.
Fossem todos como a Joaninha, ali da rua da Escola Politécnica, e nada disto acontecia, porque a Joaninha, como já fez saber, não quer que acelerem nada, quer que tudo anda como tem de andar e assim é que tem de ser e está muito bem, e isto lembra-me qualquer coisa, talvez a frase de um senhor que morreu há muito tempo, mas isso agora não interessa nada, como diz aquela senhora da televisão, a senhora Teresa Guilherme, do ponha, ponha, ou não sei se é isso, mas pronto, agora fico por aqui porque a minha mãe está a dizer-me para ir pedir ao dr. Rui que já que reabre tudo, para ele reabrir a mercearia da esquina, que dava tanto jeito e fechou, e assim sempre se arranjava emprego para o meu irmão, que por agora não tem nada que fazer e até anda a pensar emigrar, como o dr. Pedro diz que não disse.
Muito obrigada pelo texto maravilhoso!!!! Ainda me lembro das redações da Guidinha…
só posso dizer obrigado ao Nicolau
Que saudades das redações da Guidinha. Muito bem recriadas, Nicolau.
Nunca é demais lembrar Luís de Sttau Monteiro. Prosador lendário. Angústia Para o Jantar. Outra obra mítica do dito cujo. Para o talento que tinha, escreveu pouco. Resta-nos ler aquilo que nos deixou. E reler.