Big brother: movimentos bancários de 1000 euros passam a ser investigados

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 19/06/2015)

Pacheco Pereira

              Pacheco Pereira

Não sei bem que sociedade de Big Brother está a ser paulatinamente construída na Europa, como de costume sobre a nossa indiferença. Neste caso, parece que por deliberação comunitária, que assinámos de cruz como é costume. Em nome da luta contra o terrorismo e contra o branqueamento de capitais, dois excelentes pretextos que ninguém põe em causa, estão-se a minar as mais básicas liberdades do cidadão.

Quando o limite de qualquer movimento bancário “suspeito” se encontra a 1000 euros, nós não estamos perante uma medida contra o branqueamento do capital, mas uma medida contra a privacidade e a liberdade individual. É suposto que cada um possa usar em plena liberdade aquilo que lhe pertence, obtido legalmente e gasto legalmente, cumpridas todas as obrigações fiscais, sem ter de dar satisfações ao Estado.

É irónico ver estes governos “liberais” a actuarem com completa indiferença face ao indivíduo e ter de lhes lembrar que o dinheiro que coloco num banco é meu, e o seu uso legal como propriedade é discricionário. Lembrar-lhes que uma sociedade em que a propriedade, neste caso de dinheiro, e o seu uso legal, insisto, legal porque é só disso que estamos a falar, não pode ser genericamente “suspeito” para todos num limiar tão baixo como 1000 euros. Que o Estado e a banca se interroguem se eu levantar um milhão de euros, 100.000, 20.000, 5000, vá que não vá, mas 1000 euros é outra coisa – é de controlo dos cidadãos que estamos a falar.

Cada vez mais o Estado e a banca se arrogam de usar o nosso dinheiro como um mecanismo de controlo das pessoas que, mais cedo ou mais tarde, irá ser usado pelo fisco que terá acesso à informação bancária para nos perguntar o que estamos a fazer com o nosso dinheiro. É verdade que ninguém é obrigado a ter dinheiro no banco mas, hoje, ter dinheiro no banco é aceitar uma diminuição significativa da sua privacidade, que está muito para além do aceitável.

O que se está a passar é que como as entidades que devem perseguir o terrorismo e o branqueamento dos capitais, ou porque não têm meios suficientes ou porque são incompetentes, apoiam-se em mecanismos genéricos que violam a privacidade e, por aí, a liberdade de qualquer cidadão. Nada tenho contra o facto de a polícia ou os serviços de informação, no âmbito das suas competências legais, poderem ter acesso a todos estes dados, mas quero que tal seja feito com controlo judicial e pontualmente face a suspeitas e indícios genuínos e não de forma genérica e abstracta que nos torna a todos “suspeitos”.

Numa hipocrisia sem nome, impede-se os serviços de informação de procederem a escutas telefónicas – o que tinha todo o sentido fazer nos casos de terrorismo sob controlo judicial e com regras estritas de aplicação – a favor de medidas aparentemente menos intrusivas, mas na realidade cada vez mais constrangedoras da privacidade, como seja o acesso à metadata das chamadas telefónicas e o acesso aos registos do fisco. Este último caso é então muito mais flagrante, visto que a possibilidade de “seguir” uma pessoa na base dos registos do fisco é hoje muito mais eficaz do que uma escuta telefónica que qualquer terrorista pouco sofisticado sabe que deve evitar ou sabe como tornear.

E quanto ao branqueamento de capitais, 1000 euros é nada. Basta alguém jogar num casino ou comprar ouro, ou recorrer a mil e outros processos, sobejamente conhecidos das polícias, para obter resultados muito mais eficazes do que controlar as transferências bancárias a este nível de valores. E, de novo, aqui estamos apenas na antecâmara do real potencial destas medidas para a liberdade das pessoas que são cumpridoras da lei e prezam a sua esfera de privacidade, bem sei que uma atitude que hoje é cada vez mais “suspeita”. Por exemplo, se eu fizer uma transferência de 999 euros não sou por isso mais suspeito de estar a esconder alguma coisa ao tornear o controlo? E várias de 900 por cada dia, não fazem tocar os alarmes da “suspeita”? Vão tocar todas  as campainhas porque hoje, para o Estado, o cidadão é naturalmente suspeito e visto com desconfiança, sendo que quem tem dinheiro para comprar meios mais sofisticados para cometer actos ilegais, esse escapa quase sempre. Basta ir a um discreto escritório de Lisboa, e fazer a constituição de uma companhia fictícia nas ilhas Caimão ou nas ilhas do Canal, aqui bem mais perto, ou seja, criar um offshore.

Já hoje o fisco abusa e muito contra a nossa liberdade, inverte em nome do Estado o ónus da prova, sabe coisas que numa sociedade livre o Estado (logo os governos) não deveria saber sobre os cidadãos, porque  pura e simplesmente não tem nada que saber.

Os bancos têm vindo a servir de braço armado do Estado neste combate do controlo à big brother da liberdade de cada um, esquecendo que o dinheiro que lá está depositado não lhes pertence e que a rede cada vez mais apertada quanto ao uso do que é meu, que está quase sempre menos à “ordem” do que deveria estar, tem consequências. Aliás, o zelo controleiro dos bancos com o dinheiro dos cidadãos comuns contrasta com a maleabilidade de que são capazes quando se trata de “gerir” fortunas e proteger cofres com milhões em numerário, cujos movimentos não têm qualquer registo. Apetece mandar os bancos à malvas e voltar a uma economia de dinheiro vivo – no fundo 1000 euros são vinte notas de 50 e cabem num envelope –, e isso sim é muito mais propício à ilegalidade.

4 pensamentos sobre “Big brother: movimentos bancários de 1000 euros passam a ser investigados

  1. A corrupção é um direito inquestionavel de qualquer cidadão e deve ser combatido dentro da legalidade e só depois de provas bem palpaveis que se vão obter com filosofia barata.Isto se entretanto o governo não mudar claro.

  2. Pacheco Pereira, julgo que ainda é pior do que aquilo que escreve.
    ” – É verdade que ninguém é obrigado a ter dinheiro no banco”. Experimente pensar como seria para um cidadão prescindir dos serviços bancários. Embora teoricamente possível, na prática prova-se como inviável, começando logo pela proibição de fazer pagamentos em dinheiro iguais ou superiores a 1000 euros, passando por situações banais do quotidiano em que é exigido ser titular e fornecer os dados de uma conta bancária por onde obrigatoriamente devem ocorrer pagamentos ou recebimentos.

  3. Já coloquei um alarme anti-roubo no colchão!!! Hoje em dia é para lá que vou tranferir o meu dinheirito pois que nenhum banco é seguro e se entrar em falência nem São Cavaco me vale. Depois é triste verificar que em matéria de liberdades estamos a ficar pior que no tempo do estado novo!!! O António Salazar só não admitia quem estivesse contra ele, mas agora são todos eles que estão contra nós. Tenho dito.

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