O preso 44 e o Estado de direito

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 13/06/2015)

Miguel Sousa Tavares

Miguel Sousa Tavares

Refugiados nas afirmações politicamente correctas de circunstância — “à justiça o que é da justiça”, “este é o tempo da justiça”, “todos são iguais perante a lei”, “defendemos a separação de poderes”, etc. e etc. —, assustados uns com as consequências eleitorais de defender Sócrates e avisados outros com a necessidade de não melindrar os “justos” e assim atrair sobre si as atenções, os nossos “agentes políticos”, como diria o dr. Cavaco, podem estar a pactuar com uma situação irreversível e de consequências funestas para a democracia: o momento em que o Estado de direito é substituído pelo Estado da magistratura. Mas que Deus proteja todos e cada um de nós se tal vier a acontecer!

Como toda a gente de boa-fé, continuo sem saber se José Sócrates é culpado ou inocente das suspeitas e suposições que contra ele foram levantadas pelo Ministério Público. Tenho uma teoria — que fica muito aquém da teoria da acusação mas também vai, pelo menos do ponto de vista ético, além da da defesa. Mas a minha teoria, tal como o convencimento de todos os outros, num sentido ou noutro, vale zero: a educação democrática e a experiência ensinaram-me que a validade das acusações pendentes sobre uma pessoa, por maiores que sejam os indícios sobre ela propagandeados, só se apura em julgamento, depois de ouvida a acusação e a defesa, depois de produzidas as provas e analisado o seu contraditório. E como o Estado de direito felizmente não engloba a noção de julgamentos populares, seja por sondagens de opinião ou por primeiras páginas do “Correio da Manhã”, estes pré-julgamentos públicos promovidos pelo MP, no que chama casos “de especial complexidade”, não passam de uma indecente e desleal forma de litigância que mandaria a decência, se coragem é exigir demasiado, fosse denunciada como tal por aqueles que elegemos para defender o Estado de direito. Eu esperei até ver a decisão sobre a manutenção da situação de prisão preventiva de Sócrates, obrigatoriamente reanalisada seis meses após o seu início — o tal “tempo da justiça”. Agora, já vi o suficiente e não me é possível continuar calado. Sei que a minha posição é impopular, mas não sou político e pagam-me para dizer, não para calar, o que penso. E tenho por mim uma vantagem: não devo nada a Sócrates, rigorosamente nada —ao contrário de alguns que tanto lhe devem e agora ficam calados ou até aproveitam para o pisar, como o inultrapassável filósofo Carrilho. E acredito que a coragem da justiça não consiste em acompanhar a opinião pública, mas, pelo contrário e se necessário, julgar contra ela, obedecendo os juízes à lei e à sua consciência.

A manutenção de Sócrates em prisão preventiva é uma decisão que, em termos pessoais, mais parece uma “vingança mesquinha”, como disse o seu advogado, e, em termos jurídicos, é absolutamente insustentável. Mas convém começar por relembrar que a prisão preventiva, ao contrário do que deixou entender o acórdão da Relação de Lisboa neste caso, só pode ter por fundamento as quatro situações de salvaguarda processual previstas na lei e jamais um convencimento sobre a culpabilidade do suspeito — sob pena de se transformar num pré-julgamento e numa pré-condenação, sem possibilidade efectiva de defesa. Parece ser uma vingança, porque o MP já sabia que Sócrates recusaria a prisão domiciliária com pulseira electrónica e, propondo o que sabia ia ser recusado, quis apenas estender-lhe uma armadilha. Agora, até pode dizer que propôs a sua saída da prisão — só que a arrogância do arguido recusou-a. Mas, mesmo assim, quer o MP quer o juiz de Instrução (JIC) poderiam tê-lo posto em casa e, se temiam o perigo de fuga, que lhe pusessem um polícia à porta (há tantos polícias de plantão à porta de tanta gente importante e não há um disponível para vigiar um ex-primeiro-ministro?). Se o não fizeram, foi porque a coragem de Sócrates — preferindo enfrentar pelo menos mais três meses de prisão, fechado doze horas por dia numa cela com 6 metros quadrados, sob temperaturas de 36º — lhes soou como uma ofensa pessoal, insuportável de digerir.

E não tem qualquer sustentação jurídica, porque os dois fundamentos invocados pelo MP e acolhidos pelo JIC, só não são ridículos porque são graves e jogam com a liberdade de uma pessoa. A invocação do perigo de fuga (que o próprio MP reconhece ser “diminuto” e que a Relação já descartou, constituindo, portanto, caso julgado), é aberrante: alguém imagina um ex-PM, que se entregou voluntariamente à prisão, uma vez posto em liberdade, andar por aí em fuga, de cabeleira postiça, a atravessar fronteiras? E logo este, cujo orgulho, para o bem ou para o mal, é sobejamente conhecido? Já quanto à invocação do perigo de perturbação do processo, essa, é indigente: como é que Sócrates com pulseira não perturba o processo, e sem pulseira já o perturba — será que a pulseira grava conversas e analisa estados de alma?

A questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a um julgamento isento

Não, a decisão de o manter em Évora resulta apenas do facto de ele não se ter vergado, de recusar ficar calado, de se defender publicamente de acusações feitas publicamente, de enfrentar o terrorismo jornalístico diário do “Correio da Manhã”, com o qual o “segredo de justiça” mantém uma relação de compadrio escabrosa, de continuar a proclamar-se inocente e alvo de uma perseguição pessoal e política e de ter recusado a humilhação de uma prisão domiciliária, atado a uma anilha pensada para pedófilos, agressores conjugais e criminosos contumazes. E de ainda lhes ter explicado que o fazia pela sua dignidade e pela dos cargos que exerceu.

Esta semana, a “Sábado” publicou um exaustivo relato do segundo interrogatório de Sócrates perante Rosário Teixeira, a 27 de Maio. É um documento notável por duas razões. Primeiro, pelo desplante com que se assume que aquilo é o resultado de uma gravação feita pelo MP. Ouvi que a drª Maria José Morgado serviu uma teoria deveras imaginativa, segundo a qual grande parte das fugas ao segredo de justiça eram promovidas pela própria defesa, para depois se poder “vitimizar”. Neste caso, seria interessante que ela explicasse como é que a gravação de um interrogatório, feita pelo MP, foi parar a uma revista: terá o dr. Rosário Teixeira fornecido cópia à defesa de Sócrates, para ele se poder vitimizar, ou terá inadvertidamente deixado o gravador ao alcance de um qualquer funcionário ou jornalista de passagem?

Mas o mais impressionante do documento é a constatação de como, seis meses decorridos sobre a prisão preventiva e mais de um ano sobre o início das investigações, o MP continua literalmente aos papéis, seguindo o método investigatório conhecido como de “pesca de arrasto”. O ponto de partida é o mesmo de sempre e fundamental em tudo o resto: o dinheiro de Carlos Santos Silva é, na verdade, de Sócrates, e todo ele resulta de “corrupção para acto ilícito”. A partir daí, é o barro atirado à parede: a pista venezuelana do favorecimento do Grupo Lena aparentemente esgotou-se, e dificilmente, aliás, poderia caber dentro da tipificação de corrupção para acto ilícito, mas, quando muito, de prémio por gestão corrente e até louvável — o que seria eticamente insustentável, mas não crime algum. Então, as suspeitas, ou os “indícios”, passaram a recair sobre qualquer crédito ou despesa registada na conta de Santos Silva: se ele recebeu dinheiro de alguém ligado ao empreendimento de Vale do Lobo, é porque se trata de dinheiro que serviu para pagar a Sócrates a redacção ou alteração do Protal, a favor do empreendimento; se recebeu dinheiro de alguém ligado à compra ou venda da quinta que foi de Duarte Lima, é porque, por alguma obscura razão, era para pagar favores a Sócrates; se o dinheiro veio de alguém que teria terrenos na Ota, é porque Sócrates mandou fazer lá o aeroporto, em benefício de esse alguém; mas se também recebeu de alguém que tinha terrenos em Alcochete, é porque afinal, em benefício de outrem, Sócrates mudou o aeroporto para Alcochete; se passou o fim do ano em Veneza ou férias em Formentera e Santos Silva o acompanhou e pagou parte das contas, é porque o dinheiro era de Sócrates e proveniente de corrupção. E por aí adiante, numa investigação que, assim, promete durar tanto como a exemplar investigação do Freeport.

Não conheço o processo — que todos sabemos, aliás, estar em “segredo de justiça”. Mas, a avaliar pelas fugas de informação, certamente promovidas pelo dr. João Araújo, não vejo bem como é que tribunal algum, julgando com isenção e face à prova produzida, conseguirá condenar Sócrates. Porque, repito: uma coisa é a convicção, mesmo que esmagadoramente sustentada pela opinião pública, de que ele é culpado; outra coisa é a prova de tal.

Mas, face ao que se tem visto, a questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a um julgamento isento. E, se for o caso, a uma condenação baseada, não em suposições ou manchetes do “Correio da Manhã”, mas nessa coisa comezinha, chata e difícil de produzir, porém essencial, que se chama provas. O Estado de direito não é um chá das cinco.

15 pensamentos sobre “O preso 44 e o Estado de direito

  1. Obrigado Miguel por mais este artigo, Hoje mais do que nunca precisamos de jornalistas sérios que infelizmente escasseiam. Estou em total acordo com o que escreve e, tal como o Miguel e certamente como toda a gente de boa-fé, continuo sem saber se o Engº José Sócrates é culpado ou inocente das suspeitas que contra ele foram levantadas pelo Ministério Público. O que vejo e ouço é assustador. Alguns esquecem que o que hoje lhes dá prazer, amanhã pode ser uma grande dor de cabeça se por alguma razão se encontrarem na posição oposta e aí… Esta justiça assusta-me.

  2. No tempo de Socrates desapareceram do país “LIXEIRAS”como no caso de Freeport…PÂNTANOS e outras zonas,que ainda hoje e por mais 5o anos não criavam riqueza…Presentemente estamos assistindo á construção de uma PONTE rodoviária á saida de Faro direcção de Olhão INACADADA para os próximos 100 anos !!!

  3. Muito bem escrito,visão perfeita de toda esta triste situacao a que chegou este caso da nossa justiça.Ira ser quase impossível,depois de toda esta ”feira de vaidades”,entre acusadores e acusados,”jornalecos” e ”jornalistas de menor dimensão”,haver um julgamento serio e honesto. Parabéns pelo artigo Dr Miguel S.Tavares.

  4. Miguel
    Portugal faz-se de gente nao comprometida…lucida e corajosa.O CM e a TVI serao provavelmente julgadas pela opiniao publica já que os tribunais o nao farão. Vozes como a sua sao fundamentais num estado de direito …que parece nao ser o nosso.Que pena o nosso País ser assim,mas ainda poderemos ser diferentes . Você ajuda.

  5. Admiro a coragem que tem ao publicar este texto! Felizmente que não existem só “jornaleiros” que escrevem em “pasquins” que só pretendem facturar com a ignorância dos consumidores! Não concordo com algumas posições que toma, mas respeito-o por exercer um jornalismo de opinião, isento e independente!

  6. Ao estar a lêr o que o escritor escreve o que o politico do ps diz. o que o jornalista tendencioso anti esquerda debita o que o homem de direito defende, sou naturalmente um ignorante. este homem acusa, repetindo o que aquela sumidade em direito-mario soares-aquele distinto advogado, correcto e educadissimo do sr engº., só se pode tirar uma conclusão. como não está condenado ainda palos tribunais, eatá a ser absolvido sem julgamento. pedidos não sei já quantos pedidos de hábeas corps, todos recusados, teremos de somar á malvadez do juiz CARLOS ALEXANDRE e DR TEIXEIRA, mais uns incompetentes juízes que têem indeferido os pedidos. ouvi, várias vezes o dr. que foi ministro do sr sócrates, dr rui pereira, nunca o ouvi subscrever o que o advogado araújo diz, nem o que o sr TAVARES escreve e disse no seu tempo de antena na tv. o correio da manhã investiga e escreve o que escreve, porque é que os outros jornais e revistas não investigam ? em contrapartida, dentro da prisão, divulgam sem investigar, o que o preso 44 quer dizer. isto é que é de direito e democrático. ó sôr tavares, vá lá , faça como o seu inspirador politico como já era de seu pai, visite o nº 33 da abade faria. …. mas não vá lá tão poucas vezes como o sr mário., vá todos os dias. até pode escrever mais um livreco á pala. coragem homem. FORÇA. viva a sua independência e ISENÇÃO.

  7. O que é que não confrange neste país sofrido?
    Nem com “100” Miguéis lá íamos, quanto mais com um só, não obstante ser dos capazes.
    Não há opinião pública emancipada para o ajudar. Porquê?
    Porque neste sítio atormentado, ninguém levantou um dedo mendinho para a sua emancipação…ele bem sabe da poda. Tem de lutar, todavia, porque é a sua honesta maneira de estar na vida.

  8. Miguel,
    Para lá de todas as virtudes que lhe reconhecem agora também é bruxo? Escreveu este texto em 2015, estamos em 2021 e está a passar-se tudo conforme previu.
    Droga de país este, porcaria de justiça! Ao fim de tantos anos ainda não se libertaram da Santa Inquisição.

Leave a Reply to OlíviaCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.