A rendição do jornalismo

(Miguel Sousa Tavares, Expresso, 23/05/2015)

Miguel Sousa Tavares

                   Miguel Sousa Tavares

1 Ao quarto dia, uma televisão descobriu uma fotografia de um polícia, no Marquês de Pombal, a atirar de volta uma garrafa aos vândalos que tinham desencadeado uma guerra de garrafas contra a polícia e contra outros adeptos benfiquistas. E com essa imagem abriu o jornal da noite, noticiando que já tinha sido instaurado um inquérito a mais este acto de “violência policial”. Pouco depois (mesmo ao quarto dia!), lá voltaram as imagens do polícia de Guimarães agredindo um adepto do Benfica em frente à família, imagens repetidas em todas as televisões e todos os dias, de manhã à noite, até à náusea. O agredido, aliás, transformou-se em herói nacional, já é capa de revista e dá entrevistas “em exclusivo” para contar, pela enésima vez, o que já toda a gente sabe e de que as imagens contam praticamente tudo. Se temos qualquer coisa parecida com um Pulitzer, ele já deve estar reservado ao operador de câmara da CM-TV — parte dessa organização jornalística que todos os dias presta tão edificantes serviços à causa democrática e à luta pela informação contra a demagogia populista.

Temos assim um herói-cidadão e um herói-jornalista, unidos numa causa comum contra a “violência policial”. Os deputados da extrema-esquerda cumprem o seu papel de indignados por dever de ofício, uns seis “rigorosos inquéritos” já foram abertos contra os episódios da dita violência policial (o da agressão de Guimarães e o do lançamento da garrafa), e a imprensa, como um bloco monolítico, compete para ver quem se mostra mais civicamente exaltado. Porque quem perder a competição perde audiências. Desde a tarde do passado domingo, toda a imprensa — seja a chamada de “referência” seja a sabidamente de sarjeta — não faz outra coisa senão estar atenta ao desenvolvimento das opiniões sobre este caso manifestadas nas redes sociais e seguir atrás delas. Porque não há nada que a imprensa mais tema, hoje em dia, do que estar desatenta ao que chama os movimentos “virais” nas redes sociais: onde estiver o vírus está a audiência.

Acredito que quando o jornalismo abdica da sua função, submetendo-se  a interesse do público, perde a sua razão de ser. E, a prazo, está morto.

Temos assim uma curiosa e perversa inversão do contrato entre o jornalismo e o público: não é o jornalista que determina o que é notícia, é o público. O público das redes sociais — que é uma amostra, talvez maioritária mas nem por isso mais recomendável — dos que passam os dias ocupados nos Facebooks e afins, a debitar opiniões sem qualquer informação ou reflexão, a dar sentenças sumárias de execução e a vomitar “likes” com a mesma irresponsabilidade com que o povo dos circos romanos gritava a César se era para matar ou para perdoar. Esta nova forma de legitimação instantânea da informação e da opinião está já de tal modo adquirida que até vemos um grupo de magistrados, a quem une o ódio a José Sócrates, juntar-se numa rede própria, que baptizaram com o eloquente nome de “Magistrados VIP”, a coberto da qual podiam livremente (e, aliás, num português de analfabetos), sentenciar a condenação de um homem que espera ainda acusação e julgamento, e gozar com a sua situação de preso preventivo, mostrando assim o seu absoluto desprezo por todo um mundo de princípios jurídicos e éticos que lhes cabe defender e a que chamamos justiça.

Nesta selva mediática em que vivemos, nesta civilização da ignorância e da irresponsabilidade, onde cada um se toma por objecto, fonte e difusor da notícia, e onde, à falta de causas cívicas empolgantes como a de um pai agredido à bastonada por um polícia (que é um acto condenável mas isolado e que, tanto quanto me parece, não envolve perigo para a pátria ou para o regime democrático), as notícias “virais” passam a ser as férias de uma moranguita no Egipto, “surpreendida” numa selfie com o novo namorado ou o mais recente penteado do Cristiano Ronaldo. E atrás dessas empolgantes ‘notícias’ seguem os editores da imprensa, que vivem, de manhã à noite, obcecados com tudo o que se passa e se diz nas redes sociais, no terror de que qualquer coisa de “viral” lhes possa escapar. No limite, a notícia deixa até de ser o facto que lhe deu origem, mas sim o próprio vírus que dele se apoderou. Com isto, presumo que a imprensa e os jornalistas julgarão que se estão a defender da concorrência feroz destes novos “órgãos de informação” alternativos — Facebook, Twitter, Instagram, etc. Se não podem vencê-los, juntam-se a eles, ampliam a sua voz, fazem suas as ‘notícias’ deles, submetem-se à sua agenda. E, de alguma forma que nunca vi explicada, esperam assim sobreviver, no final desta luta de vida ou morte.

De caminho, como é evidente, perde-se a noção daquilo que é a função essencial do jornalista: ser um recolector de notícias e um intermediário entre a notícia em estado bruto e o seu enquadramento, o seu contraditório, a sua explicação para o público. É o caso concreto dos tristes acidentes em que degenerou a festa benfiquista. Optando por se concentrar apenas no que as redes sociais decidiram (o episódio das bastonadas em Guimarães), disso fazendo o lead e toda a substância do que aconteceu, os editores demitiram-se de se ocupar do que verdadeiramente interessava: a origem e os antecedentes destes gangues do futebol, a sua composição, a sua organização, os fins que prosseguem e a violência e destruição que deixam atrás de si; a forma como a polícia os tem de conter e enfrentar, em benefício do espectáculo e de todos os outros que apenas querem assistir a um jogo de futebol; a legitimidade que terá ou não a CML para organizar, em colaboração com o Benfica e sem garantias de segurança, uma festa que implica a entrega, até altas horas da noite, do centro da cidade a um grupo de desordeiros conhecidos como tal; e, já agora, saber quem pagou a festa, as obras, a limpeza dos destroços e os danos causados.

Eu vejo as coisas de forma diferente: acredito que quando o jornalismo abdica da sua função, submetendo-se ao interesse do público e cavalgando a onda do primarismo e da demagogia que se tomam por informação, perde a sua razão de ser. E, a prazo, está morto.

2 Um título da última edição deste jornal rezava assim: “Família Soares dos Santos interessada no Oceanário”. E comentei para comigo: “Olha que sorte não estarem interessados na Torre de Belém ou no Mosteiro da Batalha! Será que isto agora está a saque?” Pois parece que sim. Na sua febre privatizadora, o Governo quer mesmo vender ou concessionar o Oceanário, construído para todos e com os impostos de todos, e cuja exploração, curiosamente, gera lucros. Para tal, autonomizou-o da Sociedade Parque Expo — a qual prometera extinguir logo que tomou posse, mas que continua a existir, sem funções mas com prejuízos garantidos, naquilo a que eu chamo uma forma de autofagia administrativa. Ou seja: mantém o que é inútil e dá prejuízo e entrega o que dá lucro e nos orgulha. Gostaria de os ouvir dar uma só explicação que fosse para tal.

P.S. — Espero que o dr. António Mexia tenha visto uma reportagem que passou esta semana na SIC sobre um bairro de barracas na Costa da Caparica, onde vivem em condições miseráveis algumas dezenas de afro-portugueses, e a quem a EDP cortou agora a electricidade, porque, como tudo o resto ali, também a ligação é clandestina. Não contesto o princípio de que quem consome tem de pagar, nem vou comentar o que vi. Apenas digo que não é possível que uma empresa, da dimensão e com a responsabilidade social da EDP, fique indiferente àquilo. Quando perdemos as referências mínimas de humanidade que nos tornam seres humanos, tudo o resto é irrecuperável.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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