O seu trabalho é política

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/05/2015)

         Daniel Oliveira

                          Daniel Oliveira

O programa “Ídolos” funciona como dezenas de programas do género. E na aparência tem um objetivo simpático: selecionar bons cantores, no género mais comercial. Entretenimento simples, o que não faz mal nenhum. E eu não sou daqueles que espera que a televisão eduque. Quando o faz, faz um milagre. Pode haver, e há, boa televisão. Mas o meio faz tudo contra a inteligência. A televisão é, por natureza, o meio mais estúpido que pode existir. Pede quase nenhuma interação e deixa quase nenhum espaço para a imaginação. Mas é o que é, serve para o que serve, e isso não me faz perder o sono. Nem pode fazer, já que eu próprio trabalho em televisão.

O problema de programas como o “Ídolos” não é como tratam os bons. É como tratam os outros. Corresponde, na realidade, aos valores hegemónicos na nossa sociedade: se és bom, mereces a fama e a riqueza; se és mau, deves ser tratado como lixo e humilhado para gáudio dos que, em casa, também não se sentem lá grande coisa. O fascínio pelo talento alheio não chega para prender os telespectadores à televisão. O prazer da humilhação, que nos faz sentir a todos superiores a alguém, é um bónus importante.

Outro dia um leitor enviou-me um alerta e depois fui ver na televisão um dos momentos do casting do programa, que é exibido em pequenos excertos mais ou menos cómicos. Passam por ali pessoas sem qualquer talento. Pessoas para quem a passagem pela vida só se justifica se forem “famosos”. Só isso explica porque decidiram concorrer. Mas a rudeza mal educada e cruel dos jurados – no modelo habitual, há sempre uns a fazer de bonzinhos e outros de implacáveis – parece não chegar ao público. Na pós-edição ainda se fazem umas animações que gozam com gestos, comportamentos ou até características físicas dos concorrentes. No momento que vi, faziam-se crescer as orelhas, já de si grandes, a um adolescente. Ou seja, no horário nobre, humilhava-se, para os pais, os amigos, os colegas, os conhecidos e os vizinhos verem, um rapaz, usando uma característica física sua. E assim, através de uma coisa que se tolera com vigilância quando é feita por pares, da mesma idade, os produtores de televisão tratam de criar as condições para destruir, por muito tempo, a autoestima de um menor.

OS DEVERES ÉTICOS DE QUEM PRODUZ OS “ÍDOLOS” OU OS PROGRAMAS DE TERESA GUILHERME NÃO SÃO MENORES DO QUE OS DE RICARDO SALGADO OU DE UM MINISTRO. TODOS CONTRIBUÍMOS PARA A QUALIDADE DA VIDA DOS DEMAIS. OU PARA A FALTA DELA

O mesmo canal que, em telejornais, há de já ter transmitido alarmantes reportagens sobre o bullying nas escolas ou até esse novo fenómeno que é o ciberbullying, faz-se um bullying bem mais viral: o telebullying. Como podemos nós ter um discurso moral sobre o bullying nas escolas se os adultos, para ganhar dinheiro, fazem exatamente o mesmo em programas de grande audiência?

Ouvi, outro dia, Teresa Guilherme mostrar, numa entrevista, o seu enorme desprezo pela falta de princípios de Ricardo Salgado. Confesso que, ao ver os programas de Teresa Guilherme, os valores que veiculam, o lixo intelectual e moral que representam, não consegui deixar de fazer um sorriso amargo. Há pessoas que acreditam que só os empresários ou os políticos têm deveres éticos para com a comunidade. Os restantes estão apenas a ganhar a sua vida e não têm deveres para com a comunidade. Mas têm, porque todo o trabalho corresponde a deveres sociais.

Num triste regresso à desistência que nos fez viver meio século em ditadura, o povo costuma dizer: “a minha política é o trabalho”. Há uns anos, o historiador António Hespanha trocou as voltas a esta frase para dar título a um texto seu: “O meu trabalho é política”. E é sempre. Incluindo o trabalho de quem veicula, na televisão, a ideia de que quem não vence merece ser tratado como lixo. Os deveres éticos de quem produz os “Ídolos” ou os programas de Teresa Guilherme não são menores do que os de Ricardo Salgado ou de um ministro. Todos contribuímos para a qualidade da vida dos demais. Ou para a falta dela.

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