O pai Le Pen, a filha Le Pen e a cama onde nos vamos deitar

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/05/2015)

         Daniel Oliveira

                     Daniel Oliveira

A novela que a Frente Nacional tem oferecido aos franceses e ao mundo tem todos os ingredientes para agarrar o público do primeiro ao último minuto. O pai Le Pen, que, como qualquer candidato a ditador, não confia em ninguém a não ser nos que são do seu sangue, tratou de garantir que a sucessora seria a sua filha. A filha, para além de não querer viver a sua vida à sombra do paizinho, descobriu que piadas sobre os crematórios tendem a afastar eleitorado com mais de três neurónios em funcionamento e cujo coração dê sinais de vida. O ódio deve seguir os sentimentos populares modernos e dirigir-se apenas aos imigrantes e aos muçulmanos. Para além disso, Marine teve a inteligência de transformar a Frente Nacional na mais poderosa força popular através de bandeiras sociais que nunca disseram nada ao pai. Dir-se-á que é apenas mais dissimulada, e por isso mais perigosa. Concedo que sim. Mas parece-me que é, antes de tudo, politicamente mais inteligente.

O pai, percebendo que a filha ia levar mais longe do que ele a sua obra, e sofrendo da mesma doença egomaníaca de que sofrem todos os líderes fascistas, começou a sabotar o partido. Sobretudo através do esterco antissemita que naturalmente sai da sua boca e que relega a FN para o cantinho dos psicopatas. Marine Le Pen ficou então entre a espada e a parede. Ou permitia que o pai fosse minando a sua tentativa de conquistar respeitabilidade para a Frente Nacional ou desautorizava e enxovalhava o pai, o que não fica nada bem a quem defenda os valores da família.

ESTE CONFRONTO REPRESENTA APENAS UMA DOR DE CRESCIMENTO. DEPOIS DELA, A EXTREMA-DIREITA VAI PARECER MENOS INDIGESTA PARA MUITAS ELITES E PARA O POVO COMUM

A primeiro hipótese tornava a ambição de chegar à liderança da política francesa, empurrada pela cegueira europeia e pela traição histórica dos socialistas franceses, numa impossibilidade. Restava por isso a segunda. Apesar dos danos, tem a vantagem de fazer Marine parecer, por comparação, uma pessoa sensata e civilizada e de a descolar de uma vez por todas da velha extrema-direita colaboracionista. A resposta de Jean-Marie não se fez esperar. Tomado pelo seu próprio ego, que a avançada idade tornou ainda mais incontornável, o velho nazi subiu, sem ser convidado, ao palanque do 1º de Maio e tentou ofuscar a filha. O resultado será a sua provável expulsão do partido de que é presidente honorário. A reação de Jean-Marie Le Pen foi deliciosa: que a filha lhe devolva o nome que ele, louco varrido, acha que se limitou a empresar à sua descendência.

A extrema-direita é um perigo real na Europa. Na realidade, nunca, desde o final da II Guerra, foi tão perigosa. Ela não se tem limitado a crescer. Ela naturalizou-se. Está nos parlamentos, entra em governos, é aceite como se os seus valores estivessem no domínio do debate que pessoas civilizadas estão dispostas a fazer. Entrou nos corações dos povos, com a ajuda da destruição do Estado Social, que era o principal travão ao seu crescimento nas classes mais sujeitas aos efeitos das crises que nos atingem em ciclos cada vez mais rápidos. E determina hoje muito do discurso que os partidos do centro fazem sobre temas como a imigração, a segurança ou os conflitos culturais e religiosos.

A extrema-direita revela-se com muitos rostos e adapta-se à realidade específica de cada país. Pode surgir em nome da defesa de minorias e contra a intolerância de um determinado grupo étnico e religioso, a quem devolve a mesma intolerância, como acontece na Holanda. Em nome de um egoísmo nacional que se mascara de defesa da soberania democrática perante o poder dos burocratas de Bruxelas, como acontece no Reino Unido e na Finlândia. Como uma frente popular e patriótica em defesa de adquiridos sociais, como acontece em França. Ou de botas cardadas, como reação à miséria e à humilhação nacional, como acontece na Grécia. Em todos os casos, baseia-se em problemas reais para dar respostas intolerantes. E por isso está em ascensão.

A única coisa que ainda nos protege desta gente são as suas idiossincrasias. A ultrapersonalização impede-os de alargar para lá da capacidade de atração que um determinado líder tenha, a cada momento. E ao contrário do que acontecia no tempo de Hitler ou Mussolini, a exposição do líder incontestado é continuada, difícil de controlar pela propaganda e desgastante. O nacionalismo impede-os de construir um bloco europeu capaz de fazer tremer os alicerces do poder. O deprimente espetáculo que Le Pen pai e Le Pen filha nos oferecem é o que ainda nos salva. Mas este confronto representa apenas uma dor de crescimento. Depois dela, a extrema-direita vai parecer menos indigesta para muitas elites e para o povo comum. Quem, nesta Europa em processo de autodestruição, lhes preparou o caminho que carregue na sua consciência o legado político que deixa aos nossos filhos.

2 pensamentos sobre “O pai Le Pen, a filha Le Pen e a cama onde nos vamos deitar

  1. Concordo com tudo. Só discordo do considerar que o arrufo entre filha e pai não é um mero golpe de teatro. Há algures um spin doctor da Frente Nacional a rir-se à gargalhada. E a exigir um bónus salarial ao clã Le Pen.

  2. Uma das coisas que nos fragiliza perante estes abortos é a posição de uns desajustados que em vez de discutirem ideias se entretêm a construir mundos de sonhos onde os “bons” um dia vão construir sociedades onde as pessoas só pensam e decidem para o lado “bom. Cresçam e tornem-se eficientes e consequentes.
    As pessoas sabem escolher e devem escolher sem medo dos “papões” imaginarios.

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