Visto prévio

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 01/05/2015)

Pedro Adão e Silva

                    Pedro Adão e Silva

Todos os partidos têm incentivos para colaborar na transformação da disputa programática numa competição auditada tecnocraticamente.

Andou por aí uma grande indignação por força de um visto prévio que os media teriam de obter para cobrir campanhas eleitorais. Se por acaso um marciano tivesse aterrado em Portugal na sexta-feira, teria ficado convencido que a democracia corria sério risco. A proposta visava resolver um problema, mas, como tende a acontecer muitas vezes, era de tal forma estapafúrdia que tinha o condão de criar problemas maiores no seu lugar.

Como rapidamente se percebeu, a solução que estava a ser gizada foi para o caixote de lixo dos trabalhos parlamentares e não mais se ouvirá falar do tema. Ou talvez não seja assim.

Nesta semana, o visto prévio regressou, ainda que travestido e noutro domínio. Curiosamente, os mesmos que haviam expressado a sua justa indignação na semana anterior, não só não o fizeram agora como até se juntaram ao coro dos que vieram dizer, “pois muito bem. Excelente ideia”. Talvez o leitor já tenha percebido do que é que estou a falar. Isso mesmo, a ideia peregrina, sugerida pelo PSD, de os documentos de debate interno de um partido (é isso que é o “cenário macroeconómico” apresentado pelo PS) passarem a ser auditados pela Unidade Técnica de Acompanhamento Orçamental. Estamos perante mais um episódio de deslegitimação da atividade política promovido pelos próprios partidos. Os sinais são claros.

O PS deu um passo de grande alcance, ao alicerçar as suas escolhas programáticas numa modelização dos impactos estimados, quer orçamentais quer na economia. Independentemente do juízo (lá está) político sobre a natureza das opções, formalmente estamos perante uma mudança qualitativa, que só pode contagiar os outros partidos. Mas nada disto deve obrigar a que se faça do debate político uma disputa tecnocrática e, mais preocupante, que se transforme uma entidade eminentemente técnica, concebida para auditar as contas públicas, num órgão destinado a conceder vistos prévios às propostas partidárias.

Estamos a caminhar a tal velocidade para a descredibilização da política e para o enfraquecimento das escolhas soberanas dos eleitores que todos os partidos têm incentivos para colaborar na transformação da disputa programática numa competição auditada tecnocraticamente. Esta deriva é ao mesmo tempo imparável e absurda. No curto prazo, o próprio PS tem incentivos táticos para submeter o seu documento ao crivo da UTAO. Ganha em credibilidade e inverte as posições relativas, surgindo como estando no poder e remetendo o PSD, de facto, para a oposição. Mas é também uma deriva imprudente, pois exclui programas políticos que podem bem ser robustos e coerentes, mas que partem de premissas incompatíveis com o crivo da UTAO. Se, por absurdo, se generalizasse o princípio sugerido pelo PSD, PCP e BE não passariam o teste. Que pouco se fale dos riscos deste visto prévio é, aliás, prova acabada da sua eficácia.

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