YARMOUK

(Clara Ferreira Alves, in “Expresso”, 11/04/2015)

Clara Ferreira Alves

                                Clara Ferreira Alves

Os refugiados que restam estão numa situação infernal. Sem comida, sem água, sem cuidados médicos, à mercê das armas. Doentes, feridos, vulneráveis.

Devem ter visto fotografias de Yarmouk sem saber que era Yarmouk. Yarmouk ocupa pouco mais de dois quilómetros quadrados. Quando os jornais compram a agências fotografias da guerra civil na Síria, é provável que comprem Yarmouk. O campo de refugiados palestinianos forneceu até agora as mais negras e esquálidas representações da destituição e do sofrimento. Cadáveres ensanguentados, seres esfomeados, casas destruídas, ruas entulhadas, militantes armados, execuções e explosões, tudo Yarmouk providenciou. Deve ser, neste preciso momento, o lugar mais aterrador do planeta Terra. Um resumo da guerra e das consequências da guerra. A história de Yarmouk é longa. Foi estabelecido como campo não-oficial de refugiados palestinianos em 1957. O ‘não-oficial’ significa que o Governo sírio acordou um princípio funcional. Estando os palestinianos destinados a regressar às casas em Israel (isto antes da Guerra dos Seis Dias) não fazia sentido oficializar o campo. O mesmo aconteceu no Líbano, onde os campos não-oficiais se multiplicaram. Para os militantes da libertação da Palestina a proposta fazia sentido porque podiam continuar a agitar a bandeira inútil do “retorno a Israel”. Os refugiados guardavam as chaves das casas em Israel como um tesouro. Aproveitando este princípio, os países árabes que acolheram os refugiados nunca lhes deram direitos nem condições iguais aos nacionais, apesar da imensa solidariedade com “a luta do povo palestiniano”. Refugiados internados em campos permaneceram assim até hoje. No máximo da ocupação, este campo a dez minutos e oito quilómetros do centro de Damasco teve cerca de 200 mil pessoas. A UNRWA, a agência das Nações Unidas que se ocupa dos palestinianos, providenciou escolas e hospitais, comida, apoio. Países generosos como o Canadá, a Noruega e outros, que há anos sustentam os palestinianos, fizeram doações. Yarmouk tornou-se uma cidadela com animação, lojas, carros, sinais de vida na selva de fios elétricos e casas de cimento armado que são estes campos. Os shababs (rapazes, jovens) aderiam às sucessivas fações e milícias dos palestinianos, acompanhando a mudança de poder da OLP para o Hamas e mantendo uma circunscrição da FNLP-CC, Frente Nacional da Libertação da Palestina-Comando Central. O campo era um inferno, claro, mas um inferno onde os Assad tentaram remediar a destituição construindo escolas e postos clínicos. Grupos palestinianos armados aliaram-se a milícias do Governo de Damasco quando rebentou a guerra, em 2011. Em 2012, a FNLP-CC combateu “os rebeldes” do Free Syrian Army. Fações e subfações, como em todo o Médio Oriente, multiplicaram-se dentro do campo, e a população começou a sofrer. Em outubro de 2013, a fome atacou Yarmouk e no fim do Ramadão foram emitidas fatwas para ser considerada halal a carne de gatos, cães e burros que refugiados esfaimados mataram para comer. Reza a lenda que foi abatido e comido um leão do zoo de Damasco. Fotografias de gente com o peito cavado e as costelas salientes, género gueto de Varsóvia ou Lodz, circularam na web. A UNRWA, devido às milícias, estava impedida de entrar no campo e não pôde acudir. A situação piorou. Em finais de 2014, sobravam vinte mil pessoas em Yarmouk. Agora, sobram dezoito mil. No final de 2014, estive nos campos (não-oficiais) de refugiados sírios no Líbano e nos campos de Sabra e Chatila nos arredores de Beirute, favelas malcheirosas entrincheiradas na reserva Hezbollah de Dahiyeh. Pouco mais de um quilómetro quadrado e a dez minutos da Baixa de Beirute. Sobrelotados, contêm refugiados sírios e palestinianos, muitos de Yarmouk. As histórias são difíceis de escutar. Muitos queriam regressar à Síria. Pior não pode ser, diziam. Não subestimemos a guerra na Síria. Yarmouk acaba de ser invadido pelo Daesh, parece que com a ajuda da Frente Nusra. Há bolsas de combate do FSA, dos grupos palestinianos e das milícias de Assad. Ninguém sabe ao certo quem combate quem em Yarmouk mas sabe-se que o Daesh controla 90% do campo. Decapita e tortura. Os refugiados que restam estão numa situação infernal. Sem comida, sem água, sem cuidados médicos, à mercê das armas. Doentes, feridos, vulneráveis. O chefe da UNRWA, como todos os que têm por missão ajudar as vítimas, lançou um apelo desesperado para que as agências humanitárias possam entrar em Yarmouk, o que aconteceu antes quando o Free Syrian Army combatia as forças de Assad. Houve um cessar-fogo. É duvidoso que o Daesh seja sensível a apelos. E não deixa de ser um sinal da evolução da guerra que em duas semanas os soldados de Assad tenham perdido Idlib e Yarmouk para a Nusra e o Daesh. Assad pretende entrar em força em Yarmouk. Os refugiados que restam são de primeira, segunda, terceira, quarta geração. Há shababs nascidos em cativeiro que o Daesh recrutará, voluntária ou involuntariamente. A tragédia de Yarmouk continuará em cena.

Um pensamento sobre “YARMOUK

  1. Que a dignidade, a liberdade, o direito à vida, ao sonho,… nos possam acompanhar. Que a verdade nos permita acreditar no futuro! Obrigado pelo testemunho, pela coragem e pelas palavras tão duras mas tão verdadeiras. Divulgar e partilhar é um dever cívico de todos e cada um de nós.

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