Anatomia e dissecação de um colossal falhanço

(Nicolau Santos, in “Expresso”, 11/04/2015)

Nicolau Santos

     Nicolau Santos

Fez no dia 6 de abril quatro anos que Portugal pediu ajuda internacional. É mais do que tempo de fazer o balanço dos erros, mentiras e traições deste período e desconstruir o discurso que os vencedores têm produzido sobre o que se passou.

1 A 4 de abril, Angela Merkel elogia os esforços do Governo português para combater a crise, através de um novo plano de austeridade, o PEC 4. Com o apoio da chanceler alemã e do presidente da Comissão Europeia havia a real possibilidade de Portugal conseguir um resgate mais suave, idêntico ao que Espanha depois veio a ter. O primeiro-ministro, José Sócrates, dá conta ao líder da oposição, Pedro Passos Coelho, do que se passa. Este, pressionado pelo seu mentor e principal apoio partidário, Miguel Relvas, recusa-se a deixar passar o PEC 4, dizendo que não sabia de nada e que não apoiava novos sacrifícios. O seu objetivo é a queda do Governo e eleições antecipadas (ver o livro “Resgatados”, dos insuspeitos jornalistas David Dinis e Hugo Filipe Coelho). O Presidente da República, Cavaco Silva, faz um violento ataque ao Governo no seu discurso de posse, a 4 de abril, afirmando não haver espaço para mais austeridade. Os banqueiros em concertação pressionavam o ministro das Finanças. Teixeira dos Santos cede e coloca o primeiro-ministro perante o facto consumado, ao anunciar ao “Jornal de Negócios” que Portugal precisa de recorrer aos mecanismos de ajuda disponíveis. Sócrates é forçado a pedir a intervenção da troika. Merkel recebe a notícia com estupefação e irritação.

2 O memorando de entendimento (MoU) é saudado por políticos alinhados com a futura maioria, por economistas de águas doces, por banqueiros cúpidos e por comentadores fundamentalistas e bastas vezes ignorantes, pois, segundo eles, por cá nunca ninguém conseguiria elaborar tal maravilha. Hoje, pegando nas projeções para a economia portuguesa contidas no MoU, é espantoso constatar a disparidade com o que aconteceu. Em vez de um ano de austeridade tivemos três. Em vez de uma recessão não superior a 4%, tivemos quase 8%. Em vez de um ajustamento em 2/3 pelo lado da despesa e 1/3 pelo lado da receita, tivemos exatamente o contrário: uma austeridade de 23 mil milhões reduziu o défice orçamental em apenas 9 mil milhões. Em vez de um desemprego na casa dos 13%, ultrapassámos os 17%. Em vez de uma emigração que não estava prevista, vimos sair do país mais de 300 mil pessoas. E em vez da recuperação ser forte e assente nas exportações e no investimento, ela está a ser lenta e anémica, assentando nas exportações e no consumo interno. A única coisa que não falhou foi o regresso da República aos mercados. Mas tal seria possível sem as palavras do governador do BCE, Mario Draghi, no verão de 2013, ou sem o programa de compra de dívida pública dos países da zona euro? Alguém acredita que teríamos as atuais taxas de juro se não fosse isso, quando as agências de rating mantêm em lixo a nossa dívida pública? Só mesmo quem crê em contos de crianças.

3 Durante o período de ajustamento, Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, sublinhou sempre que o nosso sistema financeiro estava sólido. Afinal, não só não estava sólido como tinha mais buracos do que um queijo gruyère. BCP, BPI e Banif tiveram de recorrer à linha pública de capitalização incluída no memorando da troika, o BES implodiu, a CGD foi obrigada a fazer dois aumentos de capital subscritos pelo Estado, o Montepio está em sérias dificuldades — e só o Santander escapou.

4 O ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, e o primeiro responsável da troika, Poul Thomsen, negaram durante dois anos que houvesse um problema de esmagamento de crédito às empresas. Pelos vistos desconheciam que a esmagadora maioria das PME sempre teve falta de capital, funcionando com base no crédito bancário. Como os bancos foram obrigados a cortar drástica e rapidamente os seus rácios de crédito, milhares de empresas colapsaram, fazendo disparar o desemprego. Gaspar e a troika diriam depois terem sido surpreendidos com esta evolução. A sobranceria dos que se baseiam na infalibilidade do Excel, aliada à ignorância dos que pensam que a mesma receita funciona em qualquer lugar, tem estes resultados.

Alguém acredita que teríamos as atuais taxas de juro se não fosse o BCE e Draghi, com a nossa dívida pública a continuar a ser considerada lixo? Só mesmo quem crê em contos de crianças.

5 Passos Coelho disse e redisse que as privatizações tornariam a economia portuguesa muito mais competitiva, levando os preços praticados a descer. Pois bem, a EDP foi vendida a muito bom preço porque as autoridades garantiram aos chineses da Three Gorges que os consumidores portugueses continuariam a pagar uma elevada fatura energética. E assim tem sido. Os franceses da Vinci pagaram muito pela concessão da ANA porque lhes foi garantido que poderiam subir as taxas sempre que o movimento aeroportuário aumentasse. Já o fizeram por cinco vezes. O Governo acabou com a golden share na PT e não obstou à saída da CGD do capital da telefónica. Depois assistiu, impávido e sereno, ao desmoronamento da operadora. A CGD foi obrigada pelo Governo a vender por um mau preço a sua participação na Cimpor. Hoje, a cimenteira é uma sombra do que foi: deixou de ser um centro de decisão, de competência e de emprego da engenharia nacional. Os CTT foram privatizados e aumentaram exponencialmente os resultados, à custa da redução do número de balcões e da frequência na entrega do correio.

6 A famosa reforma do Estado resumiu-se na prática a aumentar impostos, cortar salários, pensões e apoios sociais, bem como a fragilizar as relações laborais, flexibilizando o despedimento individual, diminuindo o valor das indemnizações, reduzindo o valor do subsídio de desemprego e o seu tempo de duração. O modelo económico passou a assentar numa mão de obra qualificada mas mal paga, em empregos precários e não inovadores, em trabalhadores temerosos e nada motivados.

7 O programa de ajustamento fez Portugal recuar quase 15 anos. Perdemos centro de decisão e de competência e não apareceram outros. A classe média proletariza-se sob o peso dos impostos. Nos hospitais reaparecem doenças e epidemias há muito erradicadas. O investimento estrangeiro estruturante não veio, o perfil da economia e das exportações não se alterou, a aposta na investigação eclipsou-se. E tudo para se chegar a um ponto em que a troika nos continua a dizer que já fizemos muito mas que é preciso fazer mais — e os credores internacionais nos vão manter sob vigilância até 2035. Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade mostra que este ajustamento não teve apenas algumas coisas que correram mal — foi um colossal falhanço. E, desgraçadamente, os próximos anos vão confirmá-lo.

29 pensamentos sobre “Anatomia e dissecação de um colossal falhanço

  1. Na simplicidade das palavras a simplicidade da verdade, sem palavrões de calhamaço que por vezes nada dizem ou escondem a simplicidade dos factos reais. Parabéns a quem assim escreve.

  2. Uma análise objectiva e de fácil entendimento.
    No entanto é importante que se escreva que mais importante do que os malefícios da “cura” os grandes responsáveis estão nos originadores da “doença”. O estado em que os socialistas nos deixaram foi demasiado grave, confirmado pelo recente caso da prisão do Sócrates, do desbaratar de dinheiro e descontrolo das contas publicas. Ninguém deveria ter duvidas!
    Neste momento a cura foi demasiado penosa para todos, mas só o tempo é que dirá se havia outra solução, que não esta.
    O povo Português tem de deixar de ser medíocre e deixar de votar em PS ou PSD. Com tantos resultados negativos porque continuamos a votar e a permitir que o atual sistema politico nos governe? Sempre os mesmos? Sempre a mesma assembleia da Republica? Os mesmos deputados?
    Não compareçam nas próximas Legislativas para que seja criado um novo modelo de Governação…sejamos corajosos e não permissivos com a desgraça que nos governo à tantos anos.

  3. É o País k temos? À maioria do povo k não vai votar tem o castigo k merecem. Os poucos k votam são castigados pela inércia dos outros.

  4. E ainda se habilitam a ganhar outra vez, com a fantástica oposição que tiveram – há um certo partido então que nem à roleta russa sabe jogar! Tem os pezinhos todos furados… E ele há tanto bom chefe de família disposto a pôr de novo a cabeça no cepo. Se assim for, os dias de Portangola estão à porta….

  5. É de mais jornalistas como Nicolau Santos que a nossa imprensa necessita, sérios e honestos. Por isso vejo o Expresso da Meia Noite!

  6. Pingback: Guerra à Sanidade ~
  7. O maior problema que temos em Portugal é a verdadeira Qualificaçao Profissional. Isto nao tem a haver com estar mal remunerado. Para o país que somos até determinados altos cargos, estao bem remunerados … mas sao de uma promiscuidade … impresionante !!!! … Desde o empresario ao Politico e passando pela justiça carecem de uma verdadeira qualificaçao profissional. Nao existe gente capaz e habilitada. Isso foi notado pelo FMI que o actual governo ocultou. Uma das notas que o FMI apontou no seu relatorio diz respeito aos empresarios que nao usam os seus lucros empresariais nas suas empresas e preferem pedir emprestimos (se a coisa correr mal os lucros estao a Salvo e fecha-se a empresa com prejuizo). Esta mentalidade está subjacente a outras “artimanhas” de cariz Bancario e respectivos empresarios (lembremo-nos dos produtos toxicos). Esta falta de qualificaçao profissional estende-se aos corpos politicos, que alem de terem outras actividades (que nao deviam de ter) remuneratorias ainda usam artes retoricas e demagogicas para fins de jogos partidarios e nao em favor da Naçao. O mais alto magistrado da Naçao interviu no decurso do mandato, … tres vezes de forma desastrosa. Uma sobre as suas pensoes, Outras sobre as acçoes do BPN que foram antecipadamente vendidas e que nao beneficiou de informaçao preveligiada, e por fim um apelo “infeliz” á saude do BES para os cidadaos estarem tranquilos. Isto sem falar das mentiras sucessivas do 1 ministro que devia ter uma posiçao mais nobre, que nunca a teve. O que mais me indignou foi o facto de jovens que tinham o apoio dos pais e avos … viram ao longo do tempo, retirarem-lhe o apoio dos avós (pensoes reduzidas : reduçao de escaloes+CES+Sobretaxa e ainda por cima IRS sobre esses descontos mensais, … sem falar na retirada do subsidio de natal que foi utilizado em duodecimos — os avós foram MASSACRADOS !!!) e depois com o despedimento dos pais nos trabalhos.Finalizo com a Justiça que nao consegue PROVAS de nada (crime economico) e usa o sensionalismo para fazer de conta que está a fazer alguma coisa. É uma justiça para ricos e inoperante para o comum do cidadao. É assim neste País que foi uma Patria respeitada na sua historia, mas que no presente se encontra muito mal …. esta é a minha opiniao e vale o que vale. Pelo menos vale para mim nas decisoes dos meus actos civicos.

  8. “uma austeridade de 23 mil milhões” TODOS OS ANOS.
    Na verdade as medidas de austeridade impostas pelo governo foram de 12.300 milhões de euros em 2012, 17.600 milhões de euros em 2013 e cerca de 23.000 milhões de euros em 2014.
    O que quer dizer que nestes três anos foram retirados dos rendimentos dos portugueses cerca de 51.000 milhões de euros. E que em cada ano que se segue, a manterem-se os cortes e os impostos, teremos que é retirado ao rendimento dos portugueses cerca de 23.000 milhões de euros.

  9. Pois, muito clara, esta análise só perde por tardia. Que andaram a fazder os analistas económicos do Expresso até ontem?

  10. É necessário replicar a informação desta análise muito bem escrita e que toda a gente que tem a quarta classe percebe. Só continuamos assim, porque belém quer e pelos papagaios contratados para a intoxicação diária em TV e rádio.

  11. Bem haja Nicolau Santos.Não vergue.A coerência e a honestidade são valores que todos os jornalistas deviam ter.Infelizmente o poder econômico vai corroendo e os mais fracos cedem.

  12. Estou de acordo com o que o Nicolau Santos escreveu, claro… Não esperava outra coisa… Bem como da generalidade dos comentários dos leitores, aliás…Contudo, tirando a utópica solução: ninguém votar, abrindo eventualmente caminho a uma alteração radical do “sistema”, alguém me sugere uma solução credível e exequível para este trágico impasse?
    Obrigado

  13. Quem pensa assim é pouco inteligente, embora tenha o direito a sê-lo. Os juros são baixos também com a ajuda do
    BCE, mas sobretudo porque existe credibilidade na actuação do governo português, porque há uma tendência de franca melhoria. Se assim não fosse o Sr. Nicolau Santos que explique os juros altíssimos que a Grécia paga, e já agora que explique também porque razão os juros pagos por Portugal são até inferiores aos pagos pela Espanha e Itália. O dívida é outra coisa que Nicolau Santos também não tem capacidade para compreender. É alta, mas mais uma vez os analistas acreditam no caminho seguido que garantem que ela não sobe descontroladamente, e que tem tendência para descer. Se não fosse esta a forma de olhar a dívida países como a Itália, o Japão, Bélgica etc etc já teriam fechado as portas.

    • Caro amigo
      A sua análise é muito discutível. Só lhe ponho uma pergunta. Temos hoje uma taxa de juro a 10 inferior à dos Estados-Unidos! Não me diga que é por a economia portuguesa ser mais forte e mais saudável que a americana devido às políticas do governo! Acha que os fundamentais da economia portuguesa são melhores que os da economia americana?! Pense nisso, e talvez acorde…

  14. Jornalista claramente tendencioso não é jornalista, é político e como tal, não é melhor que todos os outros que conhecemos. Pior, mente descaradamente ao escrever sobre a “suavidade do resgate Espanhol”. A Espanha não foi sujeita a resgate. Teve sim um governo que soube ultrapassar a crise sem necessitar de ajuda externa.
    Quanto à opinião manifestada, se o governo anterior a 2011 sabia tão bem como resolver o problema, porque não o fez durante os 5 anos em que foi governo?

    • Quer você dizer que jornalista com opinião é politico? Isto não é uma notícia. É um artigo de opinião. O mal do País é existirem cidadãos ( e não cidadões como diz o Presidente) a pensar como você, que acham que a opinião sobre a res(pública) deve ser deixada aos políticos, sendo o povo uma espécie de claque de bancada que come batatas fritas e bebe coca-cola ao ritmo do sapateado de suas excelências.

  15. O que me custa é aparecerem estes capitães falcão a denegrir o bom trabalho e quase a ofender o produtor de um trabalho sério.

  16. Pena é que jornalistas como este e outros que felizmente ainda têm “pachorra ” para dizerem as verdadeiras “asneiras praticadas pelos políticos” não tenham a cobertura necessária para chegarem aos eleitores??
    Continue prezado jornalista, que as forças não lhe falte, pois a corrupção não o atingirá .
    Abraço

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.