Ninguém nasce duas vezes, senhor primeiro-ministro

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 04/03/2015)

Pedro Santos Guerreiro

                 Pedro Santos Guerreiro

O caso vale vinte paus mas tornou-se um furacão. A sombra negra no passado de Passos Coelho está na Tecnoforma, não nos descontos para a segurança social, pelo menos na versão que hoje conhecemos. A confusão nas respostas de Passos é que trouxe névoa sobre o que devia ser claro: o homem não pagou o que devia e para isso há um quadro legal. Mas o quadro tornou-se político e isso muda tudo. Para pior.

O caso agigantou-se quando não justifica tanto barulho. Tendo em conta o que se sabe neste momento, e admitindo que o primeiro-ministro foi negligente e não teve comportamento culposo, então foi um contribuinte relapso (porque não pagou), um deputado incompetente (porque não sabia) e um político medroso (porque não regularizou a situação mal soube dela, em 2012). Mas Passos não é nem de perto nem de longe um delinquente fiscal. Nem pode perder a autoridade, muito menos o mandato.

Passos gostava de parecer o que Cavaco sempre quis parecer: impoluto. Foi assim que o Presidente da República resistiu politicamente aos casos BPN e Casa da Coelha, onde há razões para suspeitar de favorecimento, com lucro em venda rápida de ações não cotadas e poupança fiscal numa permuta entre casas com valor questionavelmente semelhante. Apesar das dúvidas, Cavaco resistiu. Fez-se vítima política e pôs a sua reputação acima de tudo, recusando-se a dar muitas explicações. “Para serem mais honestos do que eu têm que nascer duas vezes”, disse então Cavaco. Calou. E calou-se.

Passos não só não pode nascer segunda vez como, depois da Tecnoforma, pela segunda vez perdeu a virgindade.

Passos foi um contribuinte relapso, um deputado incompetente e um político medroso. Mas Passos não é um delinquente fiscal.

A sua primeira resposta, no sábado, assumiu um tom institucional contra “especulações infundadas” que rapidamente se desmoronou. Não eram especulações, era informação. Não era infundado, era baseado em documentos. A “situação contributiva estava regularizada” mas havia dinheiro por pagar. A regularização estava “já prescrita” mas as dívidas à segurança social não prescrevem se não a pedido. “O Primeiro-Ministro nunca teve conhecimento de qualquer notificação” mas quando soube, em 2012, não pagou. “Embora pretendesse exercer este direito apenas em momento posterior ao do exercício do atual mandato”, Passos pagou mal percebeu que a notícia ia sair.

Depois deste comunicado, as incongruências adensaram-se. Passos culpou a segurança social, o que é ridículo; culpou a “chicana política” e depois entrou nela, evocando Sócrates; no fim, fez-se humano, é imperfeito.

Imperfeitos somos todos e mal do país intolerante à falha. Foi o caso Tecnoforma, anterior, que aliás levantou suspeitas muito mais graves: a de que Passos Coelho recebera dinheiro “por fora”, no âmbito de uma empresa que trabalhava com fundos comunitários. Dinheiro, políticos e fundos comunitários é uma péssima combinação. Passos pediu uma investigação que não poderia ser feita e passou a crise.

Esta crise também teria passado se não fosse a embrulhada que o próprio PM criou, começando pelo não pagamento imediato das dívidas em 2012, o que revela má consciência e calculismo. Passos quis passar de mansinho. Afinal, 2012 foi o ano em que o primeiro-ministro perdeu o estado de graça com a medida que só no estirador parecia possível, de aumentar a TSU aos trabalhadores descendo a das empresas. A medida acabou chumbada pelo povo na rua e pelos patrões nos corredores. Mas quebrou o lacre de tolerância popular à austeridade. Se se soubesse então que o primeiro ministro que acabara de aumentar os descontos para a segurança social aos trabalhadores não tinha pago os seus, a coisa podia ter-lhe corrido mal. Adiou para 2015. Correu pior.

6 pensamentos sobre “Ninguém nasce duas vezes, senhor primeiro-ministro

  1. Para um cidadão comum, tudo isto seria até certo ponto normal, ou anormal, depende do ponto de vista. Mas convenhamos, um ex-deputado, alguém cuja vida tem sido a política…..que por sinal é hoje Primeiro-Ministro! Não saber que era obrigatório descontar para a Segurança Social? Então esta vive de quê, se não forem as contribuições dos trabalhadores dependentes e já agora, independentes.Ainda por cima um governo que cria leis em que qualquer cidadão relapso, acaba por ser executado, por valores irrisórios! E afinal temos aquele que nos governa e que devia ser o exemplo, também ele se esquece das suas obrigações! E já agora, Pedro Guerreiro, os valores de que se falam,( que foram pagos) não é preciso ser um especialista, não batem a bota com a perdigota!….

    • Passos e seus companhons são um abcesso para portugal. É verdade, já fiz e refiz as contas e não bate a bota com a perdigota e isto não pode terminar assim. Ao contrário do que PPC pensa, que não deve explicações a ninguém, engana-se, deve e vai ter que dar. Teria sido melhor nunca termos cruzado com este estafermo, mas não, quis desafiar-nos atormentando-nos com as suas trapalhadas. Nunca imaginei ver um Governo descer – e cito com gosto, à miséria moral.

  2. Toda a vida e a minha já vai longa, sempre desconfiei de quem se diz e faz de muito honesto, normalmente tem lodo na consciência, por que ser honesto, é uma condição natural, o contrário é que é anormal.

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