As cataratas europeias

(Eduardo Paz Ferreira, Expresso, 28/02/2015)

sinfonia

Professor catedrático diz que a Europa necessita de uma intervenção para afastar a visão enevoada e a dificuldade de ver à distância.

O mês que decorreu após as eleições gregas, tal como o período que as antecedeu constituiu, seguramente, uma experiência pesada para os políticos e os cidadãos gregos mas, também, para todos quantos acreditam e querem uma Europa unida, forte e democrática. Em síntese, tornou-se especialmente evidente que, como assinalei no meu último livro, se tinha passado da Europa de Schuman à não Europa de Merkel.

Mesmo para quem tinha poucas dúvidas quanto ao desejo de Berlim de criar uma Europa alemã em vez de se perspetivar como uma Alemanha europeia (a velha angustia de Thomas Mann), o tipo de chantagem e intromissão nas eleições gregas situou-se umas oitavas acima do esperado, numa banda sonora de ressonância wagneriana, mas com épicos bem menos impressivos.

Sem qualquer pretensão de ser exaustivo — e seria muito difícil consegui-lo — recorde-se apenas algumas recentes declarações de Schäuble: “Sinto muito pelos gregos. Elegeram um Governo que de momento se comporta de maneira bastante irresponsável”, quando se batia contra a hipótese de qualquer acordo ou o desdém sorridente com que após o acordo comentou “o encontro com a realidade é sempre muito duro. Isso também é frequentemente válido para os governos. Governar é um encontro com a realidade e a realidade habitualmente não é tão bonita como os sonhos”. Ah!, e claro que não resistiu ao grosseiro comentário de que Tsipras e o seu extraordinário ministro das Finanças não tinham a mínima ideia do que estavam a fazer.

As suas palavras ecoam no eleitorado alemão e, de modo especial na comunicação social. O “Die Welt” proclamou que “Schäuble sabe a linguagem que Atenas conhece” e o “Bild”, num tom que me lembrou os tempos de Salazar e do “Diário da Manhã” e, seguramente, teve antecedentes no período negro da história alemã, titulou: “A Alemanha diz: ‘Obrigado, Wolfgang Schäuble’”.

Mas a Europa alemã tem raízes poderosas desde logo na Holanda, ali tão perto. O socialista Jeoren Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, foi inúmeras vezes fotografado e filmado olhando com ódio profundo para Varoufakis. Ao mesmo tempo, fez de tudo para inviabilizar o acordo e até conseguiu fazer desaparecer um programa razoável elaborado pela Comissão Junker.

De Junker e do seu papel nesta crise ficarão as fotografias em que segura ternamente na mão de Varoufakis e, sobretudo, a sua inesperada e quase comovente — porque feita num momento em que todos os poderes se erguiam contra a Grécia — declaração: “Pecámos contra a dignidade dos povos, especialmente na Grécia, em Portugal e também na Irlanda. Eu era presidente do Eurogrupo e pareço estúpido em dizer isto, mas há que retirar lições da história e não repetir os erros”

Deploravelmente diferente foi a atitude dos diversos líderes socialistas e sociais-democratas, que tinham tido palavras de simpatia para Tsipras e Varoufakis, como os franceses, italianos e austríacos alinharam na unanimidade da primeira reunião do Eurogrupo tal é o poder da Alemanha. A gravata que Renzi dera ao primeiro-ministro grego para pôr no dia do acordo era afinal um garrote.

Impressiona, especialmente, a cobardia destes partidos que, perdidos há largas décadas num espectro político em que não conseguem encontrar espaço, não compreendem que, ao secundar todas as políticas conservadoras, apenas abrem espaço para seguir o destino do PASOK e para que o eleitorado os ignore.

A batalha de David e Golias irá continuar e está longe de saber-se como irá acabar mas, mesmo que se pretenda valorizar o recuo grego que foi claro, o que parece certo é que para a generalidade dos cidadãos europeus começou o primeiro dia da sua vida, percebendo que é possível ter voz e que quando mais governos se juntarem aos gregos as coisas mudarão.

Para já, é claro que temos uma União que se compraz em esmagar os fracos, que esqueceu os valores da solidariedade e da democracia e que só sabe tirar prazer da distanciação em relação aos povos e às suas necessidades. É esta Europa, obcecada pela Grécia, que é incapaz de lidar com a crise da Ucrânia, com o drama do Médio Oriente e com a morte dos imigrantes desesperados que tentam atravessar o Mediterrâneo. É esta Europa que se apaga na cena internacional.

Esta é uma Europa que necessita de uma urgente intervenção às cataratas, que lhe devolva a visão enevoada e a dificuldade de ver à distância. O meu conselho é não só o de alguém que ama o projeto europeu, mas também de quem esta semana foi operado às cataratas e que, por isso, tenta solidariamente, que também a União se trate.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.