A seriedade no FMI e Passos (Nicolau Santos, Expresso, 07/02/2015)

A seriedade no FMI e Passosnicolau

O primeiro relatório do Fundo Monetário Internacional após o programa de ajustamento da economia portuguesa enforma de uma enorme falta de seriedade. Com efeito, depois de 12 avaliações positivas por parte da troika, o mínimo que se pode dizer é que este relatório contradiz tudo o que foi dito até aqui. E de duas uma: ou os representantes do FMI (Poul Thomsen, Abebe Selassie e Subir Lall) andaram a mentir durante três anos ou estão a passar a eles próprios um enorme atestado de incompetência.

Com efeito, não é possível vir dizer que “em vez do caminho virtuoso que antecipava para Portugal após o programa de ajustamento, o FMI receia agora um círculo vicioso, assente num crescimento fraco puxado pelo consumo, muita dívida e na ausência de reformas estruturais”. Pois, se receia é porque o programa de ajustamento correu mal, falhou, não obteve os resultados esperados. Alguns já se tinham tornado evidentes: a recessão foi muito superior ao esperado, o desemprego trepou muito acima do previsto e a dívida pública cresceu mais depressa e para lá do calculado. Mas o falhanço essencial é o modelo que a troika, com o apoio entusiástico do Governo português, aplicou. O que era expectável é que os cortes brutais no Estado social, nos salários dos funcionários públicos, nos rendimentos dos reformados e pensionistas e a pauperização generalizada da classe média conduziriam a um forte afluxo de investimento. Pois muito bem: em três anos, o investimento caiu 40% (!) e o investimento estrangeiro que chegou foi para comprar empresas existentes, várias delas de rendas garantidas, e não para criar novas empresas e postos de trabalho.

Depois de 12 avaliações positivas, os representantes do FMI ou andaram a mentir ou estão a passar a si próprios um atestado de incompetência

Como resultado, Portugal não alterou o perfil das suas exportações, assistiu à emigração em massa de mais de 300 mil pessoas, perdeu para mãos estrangeiras algumas das maiores empresas nacionais que apostavam na investigação e desenvolvimento e tem hoje uma economia mais débil e fragilizada, com menos capacidade de inovar, de criar empregos qualificados e bem remunerados e de atrair talentos. Logo, assim que houver alguma reposição do poder de compra, vão regressar os desequilíbrios externos e o endividamento. O Fundo escamoteia isto e o que vem dizer é que é preciso flexibilizar mais as leis laborais e desmantelar a contratação coletiva, como se fosse essa a razão do falhanço do programa. Não é. E ao país não interessa um modelo económico assente em baixos salários como fator essencial da competitividade.

Mas o outro lado deste ajustamento que teve efeitos devastadores foi a área social. Mais de dois milhões de pessoas a viver com 411 euros em média por mês, aumento generalizado do risco de pobreza em todos os grupos sociais e etários, com exclusão dos reformados, mais 150 mil pobres em três anos de austeridade — é um balanço avassalador. Que Passos Coelho diga que são dados que se referem a 2013 e que o pior já passou é somente um desejo piedoso ou mesmo alguma falta de seriedade. É que quando se mexe a sério nos apoios sociais, as consequências são profundas e duradouras, não se invertendo as tendências negativas de um ano para o outro, mesmo que muitos dos apoios fossem repostos — o que, como se sabe, não é o caso. Passos não pode desconhecer isso.

tsipras

O ódio a Tsipras e Varoufakis

O fundamentalismo doutrinário neo-liberal odeia Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis. Odeia-os porque eles vieram estilhaçar o consenso instalado. Odeia-os porque lançaram a dúvida nos espíritos. Odeias-os porque mostraram que não existe só a TINA (There Is No Alternative). Odeia-os porque não usam gravata. Odeia-os porque não se submetem ao “diktak” que esmaga a Europa. Odeia-os porque colocaram o Parlamento Europeu, a Comissão e os Estados membros em pé de igualdade como seus interlocutores. Odeia-os porque não foram a correr a Berlim prestar vassalagem a Angela Merkel. Odeia-os porque puseram a ridículo os que assim que ascenderam ao poder fizeram isso, como François Hollande ou Passos Coelho.Odeia-os porque disseram cara a cara a Wolfgang Schauble que não concordam com ele. Odeia-os porque não estão a negociar de mão estendida. Odeia-os porque estão a honrar o essencial do programa com que venceram as eleições. Odeia-os porque já perceberam que a Europa vai ter de ceder. Odeia-os porque eles estão de bem com a vida e têm humor a lidar com coisas sérias. Odeia-os porque não os vão conseguir derrotar.

A FEUP e a Efacec

A Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e a Efacec acabam de fazer algo raro em Portugal: desenvolver uma tecnologia inovadora, registar a propriedade industrial e vendê-la à australiana Dyesol, por cinco milhões de euros. O que é interessante neste exemplo? 1) a colaboração entre universidade e empresa; 2) o desenvolvimento de um projeto de investigação para responder a uma necessidade do mercado; 3) o registo da propriedade intelectual; 4) a sua venda a quem tem condições para produzir essa tecnologia, que permite a conversão direta da luz solar em energia elétrica de forma renovável durante 25 anos. É claro que seria preferível que fosse uma empresa portuguesa a massificar esta tecnologia. Mas o sucesso demonstra a capacidade nacional de investigação, desenvolvimento e inovação para produzir valor industrial. Captar novos investimentos para outros projetos passa assim a ser mais fácil.

leal

A Europa

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove — reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove — reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.

Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.

Filipa Leal

‘A Europa’, poema integrado no poema em cadeia “Renshi.eu — um diálogo europeu em versos” do Festival de Poesia de Berlim. É um poema em cadeia escrito por 28 poetas de 28 países europeus, que abordam de forma literária as questões do presente e futuro da Europa. Cada poeta começa a escrever a partir do último verso do poema anterior, dando origem a uma obra gigantesca que espelha uma miríade de olhares e referências culturais. Este poema foi lido pela autora em português, na sessão de apresentação da obra conjunta, na Akademie der Künste de Berlim.

7 pensamentos sobre “A seriedade no FMI e Passos (Nicolau Santos, Expresso, 07/02/2015)

  1. Concordo plenamente com a opinião de Nicolau Santos contida no expresso e quanto ao ódio dos nossos governantes é pura verdade e é horrível de saber, de ouvir ou ler.
    . Relativamente ao poema odorei. Não me estendo mais pq não posso.!.

  2. Mais uma crónica de quem sabe e estuda os assuntos da política portuguesa, com muita destreza e sabedoria e sem complexos…, e digo que seria bom haverem muitos mais Nicolaus….
    Quanto ao “poema” também adorei e só vem mostrar que afinal a nova geração vai fazer uma falta imensa a esta Europa envelhecida….

  3. O meu odio a esta europa e a estes governantes e exactamente igual ao que eles tem ao novo governo grego, governo de patriotas e nao de esbirros de berlim/bruxelas.

  4. A Troyka veio emprestar a 10 e cobrar a 20, impondo condições de reembolso (austeridade) tudo uma mentira para os contribuintes pagarem, ou veja-se, inspecionaram o mercado e estava tudo bem, e eis que o Bes colapsa. Pensam que somos totós? Eu não sou! Sou burro, porque sei a verdade é pago’

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