CRÓNICA DO SANTO ESPÍRITO

coelhoBarítono Coelho estava pensativo, a cabeça entre as mãos, os olhos baixos e longínquos, como se procurasse inspiração, vinda do tampo da mesa. A porta abriu-se, de modo tão subtil e pouco audível, que ele só deu pela entrada da visita, quando esta, afavelmente lhe sacudiu o ombro. Foi então que estremeceu e regressou de tão longa meditação. Era de Parco Antónius, a mão amiga.

– Algum problema, Barítono? Será que posso ajudar? Sabes que podes sempre contar comigo.

– Caro Parcos. É a imprensa, são os comentadores. Só tenho dormido à força de tomar três Valium com gasosa. Estamos a perder os jornais todos. Os angolanos só nos atacam, mesmo depois de lhes termos perdoado aquela enorme pipa de massa no caso do Banco do Santo Espírito. A Mofina amofinou-se connosco. O Bolsanamão cresceu tanto que já não consegue controlar aqueles escrivas todos e sempre teve a mania que é independente, tiques que lhe vêm ser descendente de condes e viscondes. Na televisão, ele é o Pardal de Sousa, ele é a Manuela Azeda, ele é o Pagão Feliz, ele é o Peixeiro Pereira, ela é a Temperança de Sá, para já não falar no José Trocas e no próprio Abrenúncio Costa. Nas redes sociais ele é um fartar vilanagem. Sempre que entro no facebook, com o meu perfil de “personagem fictícia”, Senhor dos Passos, fico aterrado e um dia destes, fiquei com a pulsação tão acelerada que só me apetecia era ir fumar um charro e bater com a porta. E onde estão os nossos?! Não sei. Acho que demos tanta mordomia àquela malta toda, que tínhamos na blogosfera, que agora ficámos sem tropas. Estão todos nos gabinetes, na sorna. Se eu soubesse o que sei hoje, tinham recebido à comissão e passavam recibos verdes. Era o que devíamos ter feito. Enfim, gente ingrata. Olha, estamos cercados. Mas, só pode ser manobra. Só pode ser manobra.

Parco, deixou-o discorrer, ouvindo-o atentamente. Quando ele terminou, foi dizendo:

– Mas, Barítono, manobra de quem? Com tanto favor que temos despachado, não era de estar essa gente toda a render-nos loas e encómios?!

– Parco Antónius, a única coisa grande que não despachámos a favor, foi aquele pedido do Amuado Salgado, que até quis meter ao barulho o Furão Barroso e o Zé das Moedas. Mas que diabo, aquilo já estava tão avançado que a Tia Ângela não nos deu luz verde e tivemos mesmo que fazer um Banco do Espírito Mau e um do Espírito Bom. Ou me engano muito, ou anda por aí a mão dele.

– Parco coçou a barbicha rala e ajeitou os óculos. Tinha alguma lógica, tinha. O Amuado quando se zangava era pior que jagunço à solta. Contavam-se histórias de arrepiar os pelos do peito ao mais audaz. Por fim, lá foi dizendo, em jeito comentário de grande operacional:

– Barítono, lembras-te daquela coisa das aulas da Química? Barítono ficou com cara de ponto de interrogação. O que teria a química a ver com o assunto?! Parco continuou:

– É curioso, é a Lei da Conservação da Massa do Lavoisier, lembras-te disso?

Barítono já não se lembrava nem do Lavoisier nem da Lei, e até estranhou que Parco reportasse à Química, uma Lei com tal nome. Para ele, uma Lei da Conservação da “Massa”, só podia ser uma Lei da Economia, e nunca da Química. Mas enfim, nova cara de ponto de interrogação desafiando Parco para que desenvolvesse. E ele assim o fez:

– Barítono, o Lavoisier dizia: “ Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Ora, não vamos deixar que tanta desgraça nos derrote e nos abata. A Lei, o que nos diz é simples: Se o Amuado se zangou por perder aquela “massa” toda, tal significa que alguém vai ganhar aquela “massa” toda. Só temos que seguir-lhe o rasto, saber quem a vai ganhar, pedir ajuda, ou em caso de sovinice, apresentar honorários por serviços prestados.

Barítono teve um brilho fugaz no olhar. Sim, de facto tinha lógica. Era uma via brilhante de contra-ataque. Grande economista, o tal Lavoisier. Até se sentia mais aliviado. Há muitos anos que conhecia Parco, e já sabia que ele produzia planos à velocidade do som. Normalmente aproveitava 3 em cada 10, mas este pareceu-lhe particularmente coerente, lógico, útil e bem pensado. Pelo que, foi dizendo:

– Parco, como está a minha agenda para esta semana? Parco, rapou do tablet, colocou a password que lhe deu acesso à zona dos dados mais secretos e sensíveis, dedilhou duas ou três páginas no écran e foi respondendo:

– Tirando aquelas visitas de circunstância, quatro inaugurações, ir almoçar com a tróika que aterrou de novo, reunir com o Acabado na quinta, até está uma semana pouco carregada.

– Pois bem, disse Barítono. Telefona ao Fernandinho Aguenta, e convoca-o para uma reunião. Ele vai ter que nos ajudar se quiser ficar com o Banco do Espírito Bom. Marca para sexta-feira às 23h, hora em que os jornalistas já estão meio assolapados nos digestivos a caminho das docas. Só mais uma nota: que entre pela porta do cavalo e que venha de táxi. Ele aguenta bem uma noite sem motorista e carro de serviço.

– Parco, sorriu de tal forma que até a barbicha se agitou. Estava contente e foi dizendo:

– Ai aguenta, aguenta!…

Lisboa, 29-10-2014coelho

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